segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O golpe de 64 e o PCB



O golpe de 64 e o PCB
Roberto Freire*

A realização desse debate se faz em um momento ao mesmo tempo rico e complexo. No Brasil, contamos com um governo hegemonizado por um partido de esquerda, fato não corriqueiro em nossa história, que traz esperanças novas, apesar de já estar pagando pesado tributo por ter sido eleito sem um projeto estratégico para o país. No mundo, o liberalismo e a social-democracia, esgotados, tentam se reciclar, fazendo emergir novos paradigmas, estes marcados pela globalização e pela revolução técno-científica. Um fato grave: a eclosão de nacionalismos e de atos terroristas massivos, que agridem o processo civilizatório.

Adentremos o tema. Quarenta anos após o golpe de 1964, ainda se discute o comportamento da esquerda naquele ano fatídico para o povo brasileiro. Ao longo dos anos, fui aprendendo a avaliar a conjuntura de 1964 muito mais pelas suas conseqüências do que pelas suas causas. Examinando a atuação dos dirigentes do meu partido diante do golpe e o lugar do PCB na História. Destaco três questões polêmicas: o golpismo pré-64, a opção pela luta armada e a política de frente democrática.

O golpismo

Uma das características históricas do processo político brasileiro é o golpismo, a busca de soluções políticas para os problemas de Estado e os grandes conflitos sociais por meio das forças armadas e da violência política, sempre excluindo o povo. Os militares brasileiros cultivaram, juntamente com as elites conservadoras e as nossas camadas médias, uma certa vocação golpista que marcou a vida política nacional durante todo o século passado. A esquerda brasileira também foi impregnada por ela.

O Partido Comunista Brasileiro historicamente foi dirigido por intelectuais de incipiente formação marxista, sindicalistas de origem anarquista e militares positivistas, todos muito heterodoxos. As tendências golpistas na formação e na política do PCB manifestaram-se de forma dramática no movimento de 1935, quando a direção do partido, sob influência de Prestes e do Komintern, trocou a política de massas da Aliança Nacional Libertadora, reformista e democrática, pelo levante militar puro e simples, em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Foi uma resposta golpista de esquerda ao golpismo das elites e dos setores conservadores, já então encastelados no Estado Novo de Vargas. As conseqüências são conhecidas.

Com o XX Congresso do PCUS, em que foram revelados os crimes de Stalin, e a campanha presidencial de Juscelino, inaugurou-se uma aliança inédita entre comunistas, trabalhistas e pessedistas, liderada por Prestes, João Goulart e Amaral Peixoto. O PCB iniciava sua ruptura com o golpismo, consagrada na Declaração de Março de 1958, quando o partido assume de forma inequívoca uma posição a favor da democracia, das alianças amplas e da busca de uma via pacífica para o socialismo. Tal política, entretanto, alimentado pelo conflito sino-soviético, resultou no "racha" que levou João Amazonas, Arruda Câmara e Maurício Grabois à formação do atual PC do B, em 1962.

A luta armada

As velhas tendências golpistas, porém, sobreviviam no interior do partido. Às vésperas do golpe de 1964, a radicalização política do Grupo dos 11 de Brizola, a reforma agrária "na lei ou na marra" das Ligas Camponesas de Francisco Julião e o movimento dos sargentos e marinheiros coincidem com o recrudescimento da "guerra fria", em que Estados Unidos e União Soviética se digladiavam pelo mundo afora, e na Ámerica Latina a revolução cubana era analisada e vista emocionalmente indo do amor ao ódio. É nesse ambiente que, dentro e fora do Governo Jango, discutiam-se as reformas de base.

Uma parte da direção do partido, liderada por Prestes, acredita na possibilidade de sustentação política e militar das reformas, no Governo Jango, mesmo em minoria no Congresso. Falava-se até em "golpe preventivo", o que seguramente contribuiu para dividir as forças governistas e favoreceu as conspirações militares. Há dois aspectos relevantes: de um lado, a chamada esquerda liderada pelo PCB havia rechaçado a "política de conciliação" de San Thiago Dantas e a candidatura de Juscelino, lançada pelo PSD, embora em Pernambuco, na nossa boa província rebelde, nossa Confederação do Equador, com simpatias pelo Brasil afora, nós comunistas defendíamos desde logo a chapa Juscelino/Miguel Arraes para as eleições de 1965; de outro, a classe média, descontente com a "bagunça" política e o radicalismo da esquerda, já derivava em direção aos setores conservadores que propunham um "basta" às greves e crises políticas, apoiando políticos golpistas como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e militares liderados por Castelo Branco.

Quando houve o golpe, em 31 de março, a esquerda já estava politicamente derrotada; o "dispositivo militar" de João Goulart, desarticulado. Os comandos militares leais ao presidente e mesmo aqueles ligados ao PCB tinham certo poder de fogo, mas não tinham apoio na sociedade. A decisão dos militares do partido na ativa, como o brigadeiro Teixeira – na época comandante da Base Aérea de Santa Cruz – e dirigentes partidários, principalmente daqueles que tinham formação militar, como Prestes, Giocondo Dias, Dinarco Reis e Salomão Malina, dentre outros, foi não promover uma resistência armada e provocar um banho de sangue, iniciando uma guerra civil sem chances de sucesso político imediato. A História há de reconhecer a sabedoria e a grandeza dessa decisão.

Entretanto, os setores mais radicais do partido, liderados por Carlos Marighela, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, principalmente, viam tal decisão como uma capitulação e romperam com o partido, já na preparação do VI Congresso, realizado em 1967, na mais rigorosa clandestinidade. Mas a maioria do partido apoiou a maioria da direção, a sua política de frente democrática, a estratégia de acumulação de forças e a luta de massas. Disso resultou que o PCB combateu o voto nulo então defendido pela Ação Popular-AP e outras forças de esquerda, trabalhou decisivamente pela eleição de Negrão de Lima, na Guanabara, e ajudou nas vitórias de Israel Pinheiro, em Minas Gerais, José Sarney, no Maranhão, e José Agripino, na Paraíba, nas eleições de 1965, todos ostentando uma pequena dose de insatisfação com o regime recém-instalado e por essas posições, naquela oportunidade, eram pouco simpáticos aos militares. A política de luta democrática criou, sem dúvida alguma, as bases para as grandes manifestações oposicionistas de 1968, tendo na Marcha dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, sua maior expressão.

Apesar disso, influenciada pela Revolução Cubana e no seu expansionismo pós-OLAS das teses foquistas, aliás uma recorrente histórica das revoluções vitoriosas na tentativa de exportar o seu modelo, a juventude aderiu progressivamente às concepções militaristas, a via da luta armada e às organizações clandestinas de esquerda que pretendiam adotá-las. Seqüestros, assaltos a banco e focos guerrilheiros, urbanos e rurais, acabaram também por contribuir para a estruturação de um aparato repressivo policial-militar cuja missão era exterminar lideranças políticas da oposição, tanto aquelas que atuavam na luta armada, como os dirigentes do PCB e outros democratas.

Documentos de serviços de inteligência e de repressão da ditadura e de organismos das Forças Armadas, trazidos a público, que foram objeto de matéria na imprensa brasileira e serviram como fonte da magistral obra de Elio Gaspari, são reveladores desta dramática realidade. Foram criados dois grupos ultra-secretos, formados por várias pessoas, quase todas militares e de patente de oficiais, autorizadas a matar e a sumir com os corpos: era o braço sicário da ditadura. Revelam mais que a grande preocupação do regime militar, no início da década de 70, não eram as ações armadas nem a guerrilha, então já neutralizadas, mas o "trabalho de massa, segundo a tática sempre advogada e empregada pelo PCB".

A frente democrática

"Unir, organizar e mobilizar a classe operária e demais forças antiditatoriais na luta pela redemocratização do país", assim, simples e claro, o PCB definiu o centro de sua tática de luta contra o regime na resolução do VI Congresso. Acusado de capitulação, conciliação e reformismo, o partido buscou a ocupação dos espaços legais nos sindicatos e centros estudantis, nas redações dos jornais e nas cátedras universitárias, na estrutura do MDB, o partido de oposição "consentida" que serviu de abrigo àqueles que se opunham ao regime militar.

E aqui vale uma breve lembrança histórica, por envolver o PCB, o meu Recife e o MDB da resistência. Lembro-me muito claramente que um encontro, na Assembléia Legislativa, em 1970, lançou a Carta do Recife, documento corajoso e que contribuiu para que, nós comunistas e os democratas-liberais emedebistas sustentássemos uma forte luta interna – que se daria logo após a fragorosa derrota eleitoral daquele ano – contra a tendência de alguns setores de esquerda do MDB de auto-dissolução do partido. A superação dessa tendência se deu rapidamente e, a partir de 1974, o documento elaborado no Recife era agenda de intensos debates e já provocando uma inflexão da pauta política oposicionista, que veio, indubitavelmente, a conformar um novo MDB. Ressalte-se que foi na Carta do Recife que se adotaram as teses da Constituinte e da anistia, ambas aprovadas, em 1967, pelo VI Congresso do PCB. Estas teses foram expostas ao MDB e defendidas com energia por mim e por outros companheiros comunistas e pernambucanos como o saudoso Byron Sarinho, Mano Teodósio, Hugo Martins (Guri), Marcílio Domingues e Carlos Eduardo Pereira (Cadoca), hoje no PMDB, dentre outros. Também contávamos com o apoio de companheiros que atuavam na ilegalidade, mas, sempre presentes, como os dirigentes Paulo Cavalcanti, José Moreira Lima (Zeca do Porto), Fausto Nogueira, José Sobreira, Abelardo Caminha, Waldu Cardoso, e tantos outros comunistas abnegados e anônimos, além de companheiros de outros estados, o deputado Alberto Goldman sendo um deles.

Se as teses incorporadas pelo MDB vieram pioneiramente dos comunistas, elas só se viabilizaram em virtude de homens públicos e democratas como Pinto Ferreira, Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos, Chico Pinto, Alencar Furtado, Freitas Nobre, Nadir Rosseti, Lisaneas Maciel, Amauri Muller, Airton Soares, Fernando Lyra, Marcondes Gadelha e tantos outros. Obviamente, todos sob o comando dos grandes líderes da frente democrática Ulisses Guimarães e Tancredo Neves.

A reação foi imediata, no governo, junto às forças conservadoras e em parte da mídia. Um grande jornal do Sul, ao MDB anunciar suas novas bandeiras, acusou-as como "coisa de comunista". A Constituinte e a anistia, que depois empolgaram o Brasil, realmente eram "coisa de comunista".

O esforço realizado pelos militantes do PCB para reorganizar a oposição e uni-la, juntamente com democratas como Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, dignos anticandidatos, Franco Montoro, Teotônio Vilela, Nelson Carneiro, Josaphat Marinho, Tales Ramalho e outros, não foi em vão. A primeira grande safra de vitórias foi, indiscutivelmente, nas eleições de 1974, quando o regime foi duramente derrotado nas urnas. A reação do presidente Geisel, o ditador de plantão, como todos sabem, foi o endurecimento do regime e uma ação visando a liquidação pura e simples do partido, com a realização de milhares de prisões em todo o país, os seqüestros e os assassinatos dos integrantes do Comitê Central.

São comuns avaliações que atribuem a Golbery do Couto e Silva, estrategista de Geisel, uma bem sucedida estratégia para a transição à democracia, como se os militares fossem vitoriosos e a oposição democrática derrotada. Discordo, o regime militar buscou sua institucionalização como "democracia relativa" e somente não atingiu seus objetivos porque foi sucessivamente derrotado nas eleições e o mundo mudou.

Foi assim nas eleições de 1978 quando, pela primeira vez, fui eleito deputado federal por Pernambuco, com outros seis companheiros do PCB, todos abrigados na legenda do MDB. De igual maneira, o regime militar foi derrotado nas eleições de 1982, quando a oposição elegeu a maioria dos governadores. E também foi derrotado na eleição de Tancredo Neves, depois de uma vitoria de Pirro na votação da emenda das diretas já, cuja campanha foi sem dúvida o ponto alto da luta de massas contra o regime.

A transição à democracia foi pactuada e longa, mas possibilitou que um líder operário chegasse à Presidência e superou a tutela que os nossos militares exerceram sobre a República, desde a sua proclamação. Hoje, não se escutam os clarins da revolução nas ruas, como os defensores da luta armada imaginavam ao sonhar com a derrubada da ditadura, mas felizmente o povo decide os destinos do Brasil nas urnas.

Democracia, um valor permanente

Lembrar e debater os 40 anos de regime militar como o fazemos aqui, assim como ocorreu no Recife e em várias outras partes do país, é importante para o Brasil e para a democracia. Não para apenas lembrar aos mais jovens do significado de um regime ditatorial, do fascismo, da falta de liberdades, o que se faz necessário. Mas, sobretudo, para continuar discutindo, reafirmando caminhos democráticos, pois o golpismo, presente como já disse em nossa cultura, vive a pairar sobre a política, sobre a sociedade, sobre nossos homens públicos e nossas instituições.

Estamos convencidos de que não há outro caminho para solucionar os graves problemas nacionais, fora da democracia. Qualquer atalho dará em desastre. E quando falamos em democracia, estamos definindo grandes processos de articulação que possam romper com o sebastianismo político, com o salvacionismo que, de alguma forma, esteve presente no amplo movimento que levou Lula ao poder. Se as alianças políticas dos idos de 1970 e 1980 foram fundamentais para derrotar o regime, para mudar o Brasil elas são impostergáveis. Não alianças de qualquer tipo, com forças conservadoras ou oligárquicas, ressuscitando figuras que começavam a cair no ostracismo, feitas apenas em nome da manutenção do poder, de uma certa governabilidade canhestra. Falamos de alianças estruturais, da montagem de um novo bloco político, forte, capaz de levar o Brasil romper com a inércia, criar um novo pensamento econômico, uma nova sinergia política.

Basta a crise pairar sobre um governo, como ocorre atualmente com a atual gestão petista, que setores de centro, conservadores, aventam saídas perigosas. Nesse ponto, somos claros: não queremos criar problemas ao Governo Lula, mas sim corrigir rumos, buscar saídas, formular com uma nova base de sustentação um projeto político, hoje inexistente em Brasília.

Nossa visão democrática, para além das reformas democráticas do Estado, passa, também, pela defesa do parlamentarismo como o melhor sistema de governo a apontar para o futuro. Ele nasceria como fruto de muita discussão, definido por referendo, e podendo ser instituído em 2010, fora do quadro de crise e eliminando quaisquer perspectivas golpistas contra Lula. O presidencialismo se esgotou, virou elemento de crise institucional.

Esperamos que a ditadura, definitivamente, seja varrida da nossa história como experiência. A democracia, como já se disse, talvez tenha muitas imperfeições, mas nada melhor foi inventado para ocupar o seu lugar. E olha que venho de uma tradição, a marxista, que, em épocas distantes, chegou a acreditar em uma ditadura, de classe, a ditadura do proletariado.

*Roberto Freire é presidente nacional do PPS - Partido Popular Socialista

Fonte: Revista Política Democrática (nº 8)

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