quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Ecossocialismo democrático

O mundo mudou, não vivemos mais no século XIX. O capitalismo não é mais a "ditadura da burguesia", uma vez que ocorreu uma 'socialização da política'(sufrágio universal, legalização dos sindicatos e do direito de greve, legalização dos partidos operários, etc).

Essa 'socialização da política' foi o resultado das vitórias obtidas pelas lutas heróicas do movimento operário e popular, que obrigou o capitalismo a se democratizar, deixando de ser um mero "comitê executivo" da burguesia. Em virtude disso, a esquerda também precisa mudar, precisa se adequar aos novos paradigmas da luta de classes no século XXI, começando por abandonar a defesa da ditadura do proletariado, assumindo em seu lugar a defesa incondicional da democracia como um valor universal.

Marx e Engels jamais defenderam a ditadura do proletariado como regime de partido unico(o que infelizmente acabou ocorrendo na antiga URSS e no Leste Europeu), mas com a 'socialização da política' e o estabelecimento da democracia já no próprio capitalismo, tornou-se obsoleto defender o conceito de ditadura do proletariado. Inclusive segundo o historiador marxista Jacob Gorender, "o conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele."(Jacob Gorender em entrevista a Teoria e Debate nº43)

Em entrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 51, o cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos mais importantes intelectuais marxistas da atualidade, respondeu a seguinte pergunta:

Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?

Carlos Nelson Coutinho: "Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de ' Luta de Classes na França' de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus 'Cadernos do Cárcere', quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de "sociedade civil" as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso."

(Carlos Nelson Coutinho; em entrevista a Revista Teoria e Debate nº 51 - jun/jul/ago 2002)


Portanto é chegada a hora da esquerda assumir a defesa incondicional da democracia como valor universal, ou seja, como algo que deve existir antes e principalmente depois da revolução socialista.

A esquerda também precisa estar aberta a discussão sobre as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, mudanças que alteraram o perfil da classe operária.

"O marxismo continua a ser, a meu ver, um instrumento fundamental para o entendimento das transformações por que passa o mundo hoje. Algumas delas foram previstas pelo Manifesto Comunista. A capacidade de previsão deste texto, escrito em 1847, é impressionante, sobretudo a respeito da globalização do capital. O capital não estava então globalizado como hoje; mas, quando Marx vê o capitalismo como uma etapa progressista na história, vê também, desde o início, suas terríveis contradições, que sabe que irão se acentuar à medida que a dinâmica capitalista se desenvolver. Mas existem coisas anacrônicas no Manifesto. Por exemplo, a idéia de que se constituiria, a partir da própria acumulação de capital, mais ou menos espontaneamente, uma classe operária relativamente homogênea, ligada essencialmente ao setor industrial, que se transformaria em sujeito revolucionário.

O grande problema que vivemos hoje é o da redefinição do sujeito revolucionário, o qual, a meu ver, continua a ter seu lugar no mundo do trabalho. Mas a morfologia do mundo do trabalho mudou muito. Quando lemos Germinal, de Émile Zola, percebemos que aquele tipo de trabalho e aquela maneira do capital agrupar a classe operária provocava rapidamente a sensação de identidade e a formação de uma consciência de classe. Contudo, hoje em dia, pessoas trabalham e produzem mais-valia em casa, digitando um computador. Tal como o operário na cadeia de montagem, tais pessoas são exploradas pelo capital, produzem mais-valia,, mas a possibilidade de uma identificação e da formação de uma consciência de que elas são tão exploradas quanto o operário e de que vivem também inseridas no mundo do trabalho é muito mais difícil. Essa é uma questão para a qual a obra de Marx e Engels não dá resposta.

A partir dos anos 70, ocorre a reestruturação produtiva. Já há importantes análises dessas novas formas de trabalho, mas ainda não se discutiu o modo pelo qual pode brotar delas um novo sujeito revolucionário. A velha classe operária industrial faz parte desse novo sujeito, mas o mundo do trabalho tornou-se bem mais complexo hoje."

(Carlos Nelson Coutinho; em entrevista a Revista Teoria e Debate nº 51 - jun/jul/ago 2002)


A esquerda também precisa assumir a defesa do meio ambiente, a defesa da ecologia, promovendo a conciliação do marxismo com a ecologia política, como já vem fazendo os chamados "ecossocialistas".

O que é o ecossocialismo?

O ecossocialismo é uma corrente de opinião que atua no interior do movimento ambientalista, tanto no terreno nacional como internacional. Ele é parte do movimento sócio-ambiental, mas se define claramente como anti-capitalista, ao unir a luta ecológica à causa socialista, a partir do marxismo revolucionário. Assim, o ecossocialismo demarca tanto com os socialistas que não consideram a importância estratégica da luta ecológica, quanto com os ecologistas que não atuam na perspectiva do socialismo.

No Brasil, o ecossocialismo iniciou-se na luta dos trabalhadores da Amazónia, principalmente através de Chico Mendes e do movimento dos seringueiros, que souberam associar a defesa da floresta e a defesa dos direitos dos trabalhadores e dos povos que habitam a Amazánia, ao mesmo tempo em que defendiam uma nova sociedade.

Hoje, o ecossocialismo tem conseguido cada vez mais adesões nos movimentos sociais e na esquerda brasileira. Na Europa e no mundo, ele vem se desenvolvendo, nos últimos trinta anos, a partir da contribuição teórica de marxistas não dogmaticos, cuja critica ao "socialismo real" somada a tomada de consciência ecológica, tem constituido a base para um pensamento socialista, radicalmente democrático e ecológico.


GRANDEZAS E LIMITES DO MANIFESTO COMUNISTA

Carlos Nelson Coutinho*

A extraordinária eficácia do Manifesto resulta da justeza essencial com que conceitua o impacto da emergência do capitalismo. Seus limites no entanto são históricos e dizem respeito basicamente à teoria política que fundou.

O Manifesto do Partido Comunista é, certamente, o texto mais conhecido e lido de Marx e Engels. Escrito em final de 1847 e publicado no início de 1848, ele foi provavelmente redigido apenas por Marx, que se utilizou para isso de um esboço preliminar elaborado por Engels, intitulado Princípios do comunismo. O texto lhes fôra encomendado pela Liga dos Comunistas (antes chamada de Liga dos Justos), um pequeno agrupamento de exilados alemães com sede em Londres. Quando Marx e Engels morreram, respectivamente em 1883 e em 1895, o Manifesto não só já conhecera inúmeras edições em alemão (a língua em que fôra escrito), mas também havia sido traduzido em vários outros idiomas. Essas reedições e traduções quase sempre traziam novos prefácios dos autores (sobretudo de Engels, que viveu 12 anos mais do que Marx), em muitos dos quais - sobretudo nos mais tardios - já se esboçavam autocríticas quanto a algumas de suas afirmações.

No momento em que o Manifesto foi escrito, Marx e Engels já tinham elaborado as linhas essenciais de sua ontologia do ser social (à qual deram o nome de "materialismo histórico"), cujas primeiras expressões sistemáticas se encontram em A ideologia alemã e nas Teses sobre Feuerbach (de 1845), bem como na Miséria da filosofia (de 1847). Em relação a esses textos fundadores, o Manifesto introduz, porém, uma significativa novidade: é nele que, pela primeira vez, Marx e Engels expressam de modo sistemático os fundamentos essenciais de sua teoria política, ou, mais precisamente, da teoria histórico-materialista do Estado e da revolução. Quem leu o Manifesto sabe que não é correto dizer - como, entre outros, Norberto Bobbio o fez nos anos 70 - que não existe em Marx uma teoria política.

A extraordinária eficácia do Manifesto - um dos textos teórico-políticos certamente mais influentes em toda a história - resulta, para além dos seus inegáveis méritos literários, da justeza essencial das grandes linhas com que conceitua o impacto que a emergência e a consolidação do capitalismo provocaram na evolução da humanidade. O que hoje conhecemos como "modernidade" tem suas principais determinações registradas nos dois primeiros capítulos do Manifesto, sugestivamente intitulados "Burgueses e proletários" e "Proletários e comunistas". Todos os traços que, pelo menos desde os iluministas, vinham sendo apontados como distintivos da era moderna (em contraposição à Antigüidade clássica e ao mundo feudal) encontram no Manifesto uma exemplar síntese histórico-dialética, à qual nem mesmo os mais ferrenhos adversários do marxismo têm recusado - quando dispõem de um mínimo de isenção - o qualificativo de "genial".

Surpreende no texto do Manifesto, escrito há 150 anos, a atualidade com que, por exemplo, seus autores descrevem os fundamentos do modo de produção e da formação econômico-social capitalistas, sob cujo domínio continuamos a viver ainda hoje. Embora sejam críticos radicais do capitalismo, Marx e Engels não são românticos: têm clara consciência não só da irreversibilidade, mas também do caráter liberador e revolucionário das novas formas de sociabilidade que o capitalismo vinha introduzindo - e, de certo modo, continuou a introduzir - no modo de relacionamento e de interação entre os homens. Um famoso livro de Marshall Berman tornou ainda mais conhecida a expressão "tudo o que é sólido desmancha no ar", com a qual o Manifesto busca resumir o sentido das transformações que o capitalismo introduzia no mundo, gerando - com sua carga fortemente emancipatória, mas também com suas dilaceradoras contradições e impasses - o que hoje conhecemos como "modernidade".

Entre as novidades trazidas pelo capitalismo, e não em último lugar, Marx e Engels registram o fenômeno que hoje recebe o nome de "globalização": "Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias - lê-se no Manifesto -, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isso se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal". É dessa globalização do capital que Marx e Engels retiram a justa percepção de que os opositores do capitalismo - os trabalhadores - devem também se organizar em nível internacional.

Ao mesmo tempo em que descreve premonitoriamente características que o capitalismo só viria a manifestar plenamente nos dias de hoje, o Manifesto também é atualíssimo ao apontar as contradições que essa formação econômico-social (e cultural) traz consigo. "O sistema burguês - observam Marx e Engels - tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. De que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande parte das forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las". O diagnóstico é, também ele, atualíssimo: "As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia". Ou seja: as promessas de emancipação humana trazidas pela modernidade capitalista (entre as quais as promessas de democratização e de universalização da cidadania) exigem, para sua plena realização, a superação do próprio capitalismo.

E o Manifesto é também de grande atualidade quando indica os sujeitos capazes de encaminhar essa superação: "A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas - os operários modernos, os proletários". É no mundo do trabalho, no mundo dos que geram as riquezas que o capital expropria, que se gestam as principais forças objetiva e subjetivamente interessadas na construção de uma nova ordem social, que Marx e Engels concebem como capaz de recolher os momentos emancipatórios trazidos pela modernidade capitalista mas, ao mesmo tempo, de superar suas contradições e impasses. Escrevendo em 1848, nossos dois autores não podiam prever a grande diversificação que iria envolver, nos 150 anos subseqüentes, o universo dos que vivem do trabalho e, por conseguinte, dos que geram mais-valia para o capital. Por isso, ainda identificavam sumariamente os trabalhadores com a classe operária fabril, uma identificação que já não se sustenta hoje. Contudo, ao mostrar que é no mundo dos que trabalham - e que são explorados pelo capital - que se gesta o portador material da superação do capitalismo, o Manifesto demonstra mais uma vez a sua atualidade, a sua sintonia com o presente.

Malgrado isso, é preciso dizer claramente que quem quer ser marxista hoje não pode repetir mecanicamente o que é dito no Manifesto. Lukács observou, já em 1923, que a ortodoxia marxista se refere exclusivamente ao método, o que implicaria, segundo ele, a possibilidade (ou mesmo a necessidade) de se deixar de lado, ou mesmo de se recusar, muitas das afirmações concretas de Marx e Engels. Essa relativização significa que, ao lado de sua extraordinária grandeza e de sua surpreendente atualidade, o Manifesto também apresenta limites.

Tais limites decorrem, antes de mais nada, do fato de que Marx e Engels adotaram metodologicamente, nesse texto, um ponto de vista abstrato: eles se concentraram nos traços mais gerais do modo de produção capitalista, sem analisar suas manifestações concretas em diferentes formações econômico-sociais. Tal ponto de vista, ao mesmo tempo em que lhes permitiu a captação das determinações essenciais do capitalismo, possibilitou-lhes ainda emprestar ao Manifesto aquela dimensão de época que faz a sua grandeza e que talvez seja a razão maior de sua permanente eficácia. Mas também lhes impediu de levar em conta mediações concretas que tornariam mais ricas, como irá ocorrer em textos posteriores, as suas análises. (Nesse sentido, bastaria comparar o relativo esquematismo da definição do Estado no Manifesto com a riqueza concreta da análise do fenômeno político no 18 Brumário, escrito por Marx apenas três anos depois.) Contudo, os limites da obra clássica de 1848 são, sobretudo, limites históricos: escrevendo em 1848, Marx e Engels não podiam elevar a conceito inúmeras determinações que o desenvolvimento histórico sucessivo introduziria no ser social, alterando assim os termos com que eles definem, no Manifesto, alguns complexos problemáticos tão significativos - para a teoria política que fundaram - como a luta de classes, o Estado e a revolução.

Depois de afirmar que "a época da burguesia caracterizou-se por ter simplificado os antagonismos de classe" (uma afirmação que é relativizada no 18 Brumário e em outros textos posteriores), Marx e Engels afirmam no Manifesto: "O poder político do Estado moderno não é mais do que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia. [...] O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra". Essa enfática afirmação de que o poder do Estado capitalista se impõe essencialmente pela coerção (ou "opressão") resulta da constatação de que a sociedade burguesa, ao contrário das anteriores sociedades de classe, é incapaz de "exercer o seu domínio porque não pode assegurar a existência do seu escravo", isto é, do trabalhador assalariado. A lei do movimento do capital, segundo os autores do Manifesto, conduziria o proletariado à pauperização absoluta. Isso, ao mesmo tempo que imporia ao Estado burguês a necessidade de uma coerção permanente sobre os trabalhadores, levaria a luta de classes a assumir a forma da guerra civil: "Esboçando em linhas gerais as fases de desenvolvimento do proletariado - diz ainda o Manifesto -, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, e que durará até a hora em que essa guerra explodir numa revolução aberta e o proletariado estabelecer sua dominação pela derrubada violenta da burguesia".

Expressa-se assim, no Manifesto, uma teoria política centrada essencialmente em três pontos: 1) numa noção "restrita" do Estado, segundo a qual esse seria o "comitê executivo" da classe dominante, que se vale essencialmente da coerção (ou da "opressão") para cumprir suas funções; 2) numa concepção da luta de classes como conflito bipolar e "simplificado" entre burgueses e proletários, que se expressa como "uma guerra civil mais ou menos oculta", que levará necessariamente a uma "explosão"; 3) numa visão da revolução socialista como "revolução permanente", que tem seu momento resolutivo na constituição de um contrapoder da classe operária, que deve "derrubar violentamente" o poder burguês e substituí-lo por um outro poder (que, pouco tempo depois do Manifesto, Marx chamará - recolhendo um termo de Auguste Blanqui - de "ditadura do proletariado").

Um marxista que compreenda a "ortodoxia" não como uma reverência fetichista aos textos, mas como o empenho em ser metodologicamente fiel ao movimento histórico-dinâmico do real, não pode repetir essas definições como sendo plenamente válidas hoje. Novos fenômenos surgiram, sobretudo a partir do último terço do século XIX, os quais - ao introduzir novas determinações no ser social do capitalismo - tornaram obsoletas muitas das características presentes em tais definições.

Por um lado, a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade) - uma passagem amplamente teorizada por Marx no Livro 1 de O Capital, publicado em 1867 - alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas mais institucionalizadas, que não podem ser equiparadas a uma "guerra civil". E, por outro lado, em estreita correlação com essa alteração infra-estrutural, ocorreu uma crescente "socialização da política" (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa), a qual forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não os da classe dominante, com o que - sem deixar de ser um Estado de classe - ele não mais pode ser definido como um mero "comitê executivo" da burguesia. Ao lado da coerção, gestaram-se também mecanismos de tipo consensual. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada não mais sob a forma de uma "explosão violenta" concentrada num curto lapso de tempo, como ainda o faz o Manifesto, mas sim de um movimento processual, de longa duração, que opera nos espaços progressivamente abertos pelas instituições liberal-democráticas (as quais, de resto, resultam em grande parte das lutas dos trabalhadores).

Embora indicações no sentido de revisar a teoria para adequá-la a esse novo contexto histórico já estejam presentes nos próprios Marx e Engels depois do Manifesto (como se pode ver, entre outros escritos, nos prefácios mais tardios de ambos às reedições e traduções do texto de 1848), o fato é que uma nova teoria marxista do Estado e da revolução só viria à luz, de modo sistemático, nos célebres Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci. Com base numa correta visão historicista do método de Marx, Gramsci percebeu a essência dos limites históricos dos seus mestres (e, em conseqüência, do Manifesto). Numa nota em que fala da teoria do Estado em Hegel, diz Gramsci: "Sua concepção [de Hegel] da associação só pode ser ainda vaga e primitiva, situada entre o político e o econômico, de acordo com a experiência da época, que era ainda restrita e fornecia um único exemplo completo de organização, a organização "corporativa"[...] Marx não podia ter experiências históricas superiores às de Hegel (pelo menos muito superiores), mas tinha o sentido das massas, graças à sua atividade jornalística e de agitação. O conceito de organização em Marx permanece ainda preso aos seguintes elementos: organizações profissionais, clubes jacobinos, conspirações secretas de pequenos grupos [como a Liga dos Comunistas], organização jornalística".

Assim, ao mesmo tempo que indica os limites históricos de Marx e Engels, Gramsci recolhe o essencial do ensinamento deles: o autor dos Cadernos não abandona as teorias de Estado e revolução socialista elaboradas por esses autores, inclusive no Manifesto, mas as enriquece com novas determinações, recolhidas do movimento histórico que ele teve a possibilidade de vivenciar. A revisão do marxismo empreendida por Gramsci - que coloca as idéias de Marx e Engels em plena sintonia com o nosso tempo - nos ensina uma lição: reler o Manifesto, de um ponto de vista marxista, significa relê-lo de modo crítico, relativizá-lo, situá-lo historicamente.

Essa necessária relativização histórica, contudo, não nos deve fazer esquecer que poucos textos resistiram ao tempo tanto quanto o Manifesto do Partido Comunista. É surpreendente sua atualidade, sua capacidade de nos falar - e de nos ensinar - sobre o nosso mundo de hoje. Além dos traços do capitalismo que já mencionamos antes, é também extremamente atual, por exemplo, a concepção de comunismo que o Manifesto nos sugere: a de uma organização social na qual "o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos". É uma frase densa de significado, que fornece aos marxistas de hoje, ao mesmo tempo, critérios para avaliar as razões do fracasso do "socialismo real", para recordar a necessidade de recolher o que de melhor existe na tradição liberal e democrática e, sobretudo, para sugerir um dos traços essenciais do comunismo, que continua sendo - e talvez hoje mais do que nunca - a única alternativa racional e sensata à crescente barbárie capitalista.


*Carlos Nelson Coutinho é professor titular de Teoria Política na UFRJ


ECOLOGIA E SOCIALISMO

Michael Löwy *

Quando o tema é ecologia e socialismo, o primeiro a ser considerado é até que ponto a razão capitalista está levando o nosso pequeno planeta - e os seres vivos que o habitam - a uma situação catastrófica do ponto de vista do meio-ambiente, das condições de sobrevivência da vida humana e da vida em geral. Aproxima-se um desastre de proporções ainda incalculáveis e os sinais disso já são visíveis.

Atualmente estão se produzindo tempestades tropicais que já assolaram regiões dos Estados Unidos. Especialistas no tema acenam para a possibilidade de que esses desastres chamados naturais tenham relação com o aquecimento global do planeta e das águas oceânicas.

Os dramáticos resultados do desequilíbrio ecológico provocado pela lógica destrutiva da acumulação capitalista são agora evidentes, e os sofreremos ainda mais dentro de dois, dez, cinqüenta anos. Não é uma questão para ser resolvida dentro de um século, nem sequer para trinta anos, é para agora; portanto, requer uma urgente resposta política, ética e humana.

Como a oligarquia dominante está enfrentando estes problemas? Sua resposta é lamentável. Os setores ecologicamente mais avançados do capital internacional - a burguesia européia e outras, como os japoneses - chegaram a um acordo para encarar o problema que consideravam de maior urgência, que é o do efeito estufa: o chamado Protocolo de Kyoto.

Daqui a alguns anos, esse efeito estufa vai provocar o degelo nas zonas glaciais, com o que o nível do mar vai subir, inundando várias cidades costeiras. Este é um cenário bastante provável, e pode estar começando agora mesmo, com o exemplo mais conhecido da tragédia de Nova Orleans.

A resposta dos capitalistas mais conscientes, mais abertos à questão ecológica, se resume no Protocolo de Kyoto, que é absolutamente insuficiente. O Protocolo busca, eventualmente, estabilizar o efeito estufa para dentro de 10 ou 15 anos, com base num mecanismo absurdo chamado "mercado dos direitos de poluir". Os países mais ricos seguem poluindo o mundo, mas baseados na possibilidade de comprar dos países pobres o direito de poluir o que eles não utilizam. Transformam o direito de poluir em mercadoria. Deste modo, as nações continuam poluindo: tanto quanto podem ou estejam dispostos a pagar. Isso é o mais avançado que a elite dominante conseguiu produzir.

Esse acordo mínimo, vazio, falido, é perfeitamente incapaz de responder ao problema: os Estados Unidos, que são o país mais poluidor do mundo, se negam a assinar o Tratado de Kyoto e, enquanto isso, seguem desenvolvendo sua economia na lógica da destruição e da poluição.

O ecossocialismo

Necessitamos pensar em soluções radicais para esse problema. A solução de Kyoto é absolutamente insuficiente e rechaçada pelos Estados Unidos. Se vamos pensar em termos de soluções radicais, necessitamos pensar na questão do socialismo. Por isso, existe um movimento, uma idéia, um programa, que é o ecossocialismo.

O ecossocialismo parte de algumas idéias fundamentais de Marx sobre a lógica do capital e de alguns dos descobrimentos, avanços e conquistas científicas do movimento ecológico e da ciência ecológica. Marx não havia colocado ainda a questão da ecologia em sua análise porque, na sua época, a questão era muito pouco evidente. Mas ele afirma, em O Capital, que o sistema capitalista esgota as forças do trabalhador e as forças da Terra. Traça um paralelo entre o esgotamento do trabalhador e o esgotamento do planeta. Portanto, o desenvolvimento do capitalismo acaba com a natureza.

As atuais fontes de energia do capitalismo são nocivas e perigosas; o que é perigoso para o meio-ambiente, também o é para a humanidade: quer sejam as energias fósseis, em particular o petróleo que vai acabar dentro de algumas décadas - e se sabe matematicamente que vai acabar -, quer seja a energia atômica, que é uma falsa alternativa, pois o lixo nuclear é um problema gigantesco, muito perigoso, e que ninguém consegue resolver.

Então, a transformação revolucionária das forças produtivas passa pela questão das novas fontes de energia, pelas chamadas fontes de energia renováveis. No lugar do petróleo poluidor e da energia nuclear devastadora, necessita-se buscar energias renováveis, como a energia solar. Mas ela não interessa aos capitalistas, porque é gratuita, difícil de vender e não é mercadoria.

O capitalismo não se interessa pela energia solar, não investe em seu desenvolvimento. Obviamente, do ponto de vista socialista, é absolutamente prioritária a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico da energia solar. Não é a única, mas, com certeza terá um papel central no processo de transformação radical do projeto ecossocialista.

Por isso, alguns velhos socialistas relacionam diretamente nossa utopia revolucionária, o socialismo, o comunismo, com o Sol, com a energia solar. Essa expressão de "comunismo solar" já aparece em alguns trabalhos de ecossocialistas. Haveria uma espécie de profunda afinidade entre a energia solar e o projeto comunista.

Os balanços negativos

Outro tema que deve ser examinado é o balanço negativo do que foi, a partir da visão ecológica, a experiência do chamado "socialismo real" da União Soviética e outros Estados burocráticos. Do ponto de vista da transformação do aparelho produtivo, que avançou muito pouco, os resultados foram enormes catástrofes ecológicas. Essa experiência é um caminho que nós não devemos seguir.

Outro balanço negativo é o do reformismo verde. Os partidos verdes que se formaram nos anos sessenta e setenta, no começo com certa perspectiva radical, terminaram quase todos, entrando em governos de centro-esquerda e convertendo-se ao social-liberalismo. As soluções que se requerem não passam por uma reforma ecológica aqui ou acolá; isso não resolve nenhum dos problemas. O balanço desse eco-reformismo verde é, portanto, bastante decepcionante.

Necessitamos levantar esta utopia revolucionária, essa possibilidade que é o ecossocialismo, que é o comunismo solar. A probabilidade de uma transformação radical da sociedade implica a expropriação do Capital. Mas, ficar apenas na expropriação dos capitalistas não enfrentará a questão do meio-ambiente.

A perspectiva ecológica, compreendida na sua radicalidade como a própria perspectiva socialista, implica a superação do capitalismo, a possibilidade de uma sociedade mais humana, justa, igualitária, democrática e capaz de estabelecer uma relação harmoniosa dos seres humanos entre si e com o meio-ambiente, com a natureza.

Não basta estabelecer este objetivo, essa utopia revolucionária. É preciso começar a construir esse futuro desde já. É necessário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas; como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende contra uma empresa poluidora; ou a defesa de uma parte da natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial destrutivo.

É importante ir construindo a relação entre as lutas sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas ao redor de objetivos comuns. Por exemplo, as comunidades indígenas ou camponesas que enfrentam as multinacionais desenvolvem um combate antiimperialista, mas também social e ecológico. A luta pelo transporte coletivo moderno e gratuito é um combate para avançar na solução do problema da poluição do ar. Conquistar uma rede de transporte público gratuito significa que a circulação de automóveis vai diminuir, que a poluição será menor, que o ar se tornará mais respirável.

Necessitamos perceber como, na prática, com essa perspectiva radical, as batalhas diárias vão se combinando, convergindo, articulando.

Hoje o ecossocialismo é não só trabalho de pensadores ou revistas especializadas, está presente nos movimentos sociais; mesmo que alguns deles não se chamem ecologistas ou socialistas, está presente no espírito, na radicalidade, na dinâmica dos movimentos sociais, em particular nas nações do Terceiro Mundo como a Índia, os países africanos e os latino-americanos.

Mas alguns ideólogos da ecologia colocam falsos problemas. Por exemplo, que a degradação do meio-ambiente é culpa de nosso consumismo, que cada um de nós consome muito, que é necessário reduzir o consumo para proteger o meio-ambiente. Isso responsabiliza os indivíduos e redime o sistema. É verdade que o consumo dos indivíduos é um problema, mas o consumo do sistema capitalista, do militarismo capitalista, da lógica de acumulação do capital, é muito maior.

Então, em vez de apregoar a autolimitação individual, é necessário chamar à organização para lutar contra o sistema capitalista; essa deve ser nossa resposta.

Outra visão equivocada é aquela que declara que a culpa é do ser humano, que mediante o antropocentrismo e o humanismo se pôs no centro e desprezou os outros seres vivos. Creio que esta concepção causa falsos problemas. Porque é do interesse da humanidade, da sobrevivência dos seres humanos, dos homens e das mulheres, preservar o meio do qual dependem inevitavelmente.

Não se trata de contrapor a sobrevivência humana à de outras espécies, trata-se de entender que elas são inseparáveis e que nossa sobrevivência como seres humanos depende da salvaguarda do equilíbrio ecológico e da diversidade das espécies; portanto, desde o ecossocialismo estaríamos falando de um humanismo biocentrista.

*Michael Löwy é cientista social, leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da Universidad de Paris. É autor de As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (Cortez Editora, 1998) e A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo. (Civilização Brasileira, 2002), entre outras obras.

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