sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FELIZ 2011

FELIZ 2011
Frei Betto *

Para ti e para mim, um feliz ano-novo. Não mera troca numérica de calendário, de quem mantém seu corpo inerte, preso às raízes da insensatez. Nem a sucessão de dias que se repetem no giro cíclico dos gregos antigos, desprovidos de senso histórico. Nem a multiplicação das rugas que se acumulam em nossos corações, oxidadas pela covardia e a saudade de não ser o que se é.

Anseio por um ano-novo capaz de reacender em nós energias generosas, consciência crítica, solidariedade discreta, afetos adormecidos, e a irrefreável vitalidade de quem reinventa o amor a cada dia. Um novo tempo de alegorias, no qual a poesia nos embriague a alma.

Um novo ano despido de soberbas, de evocações ególatras, de rancores asfixiantes e da indizível inveja causada pela felicidade alheia. Ano livre de rumores nefastos, incontinência da língua, indiferença à dor e exacerbação de tudo aquilo que, em nós, esculpe o perfil ácido da desumanidade.

Para ti e para mim desejo um ano-novo em que cada manhã ressoe como o cantar de laudes sob o esplendor de uma revoada de pássaros. E que sejamos despertados pelo afago prenhe de alvíssaras. Sejam os nossos gestos expressões litúrgicas de bem-querer e gratidões.

Não desejo um novo ano de velhos vícios arraigados, como não considerar suficiente o necessário, acumular supérfluos nas gavetas da casa e do coração ou a leniência perante as injustiças. Nenhum ano pode ser novo se arrastamos vida afora nossas almas incendiadas pela ira, o humor de mãos dadas com o rancor, o orgulho como escudo frente aos que apontam nossos erros.

Quero, para ti e para mim, um ano-novo em que a partilha do pão instaure a paz e no qual toda paixão aflore em duradouro amor. Um ano no qual o tempo se desenlace como um tecido fino e transparente, a enlevar-nos na rota do transcendente. Ano de silente contemplação do milagre da Criação e cuidadosa proteção da mãe natureza.

Faço votos de que em 2011 a cegueira apague nossas fúteis ilusões e que brotos de saudáveis quimeras palmilhem a estrada que conduz ao mais íntimo de nós mesmos. Seja para nós um ano de muita fortuna, inflado de projetos promissores, destituído de mesquinharias e perjúrios.

Ano bom é o que traz efervescência espiritual, o vinho a inebriar-nos do sagrado, a alma tecida de alegrias inefáveis, os passos movidos pela vontade alada, o vigor juvenil de quem não encara a velhice como doença. Ano de reavivar antigas amizades, libertar-se dos apegos vorazes, trocar a tagarelice pelo aconchego reflexivo dos livros e deixar a música inundar nossos mais recônditos sentimentos.

Ano-novo é o que transfigura nossas mais secretas intenções e projeta luz nas veredas escavadas por cada uma de nossas positivas atitudes. Assim, haverão de cair as escamas de nossos olhos, os ouvidos acolherão a melodia sideral, o perfume do otimismo nos inebriará, e de nossos lábios brotarão cânticos de aleluia.

Para ti e para mim seja o ano de 2011 ninho de férteis esperanças e senda primaveril rumo a outros mundos possíveis. À mesa, a gratuidade inconsútil; à porta, nossas resistência desarmadas; à sala, um rumor de anjos. E seja toda a casa reduto de sabores e saberes agradáveis ao paladar e à inteligência.

Seja novo, para ti e para mim, o ano entrante, não por reiniciar a sucessão de meses, semanas e dias, e sim por revitalizar nossos bons propósitos, livrar-nos da letargia frente aos desafios espelhados na utopia e arrancar de nosso âmago toda erva daninha semeada por ambições desmedidas.

Novo por incutir em nós a modéstia translúcida de avós afetuosas, o fervor espiritual dos místicos, a exuberância dos bailarinos a multiplicarem as potencialidades do corpo. Ano de romper barreiras do preconceito, derrubar cercas da ganância, fertilizar com sementes altruístas o chão no qual pisamos.

Para ti e para mim, um feliz ano-novo no qual a vida seja diariamente celebrada como dom de Deus, dádiva amorosa, encantadora aventura.

Ao longo deste ano esteja sempre presente, em nossas mentes e em nosso agir, que viver é muito perigozo.


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O caso Neymar

O caso Neymar
Frei Betto *

Neymar tem 18 anos de idade. É uma revelação como jogador de futebol. Joga pelo Santos, o mesmo time que projetou Pelé. E joga bem, muito bem. A diferença entre ambos é que Pelé procedia com educação em campo.

Neymar é rebelde. Não entra apenas para jogar. Entra para lutar: xinga o técnico, os adversários, até os parceiros de time. Neymar tem pavio curto. Age na base do olho por olho, dente por dente. Não se conforma de a bola não ser só dele.

O então técnico do Santos, Dorival Júnior, em seu papel de educador (como todo técnico deveria fazer), puniu Neymar por mau comportamento. Por falta de ética, suspendeu-o de jogo. De um jogo importante, contra o Corinthians, dia 22 de setembro. A diretoria do Santos, em vez de apoiar o técnico, decidiu apoiar Neymar. Foi como se a escola expulsasse o professor ofendido pelo aluno.

Dorival Júnior foi demitido e Neymar, escalado para o jogo contra o Corinthians. Adiantou pouco. Neymar não fez gol e o Corinthians ganhou por 3 X 2.

Mano Menezes, técnico da seleção brasileira, fez o que o Santos deveria ter feito: puniu o jovem atleta. Mostrou-lhe os limites. Se Neymar quer ver seu talento brilhando nos jogos, terá que aprender a dominar sua fúria. Aprender a saber perder. E admitir que ele pode muito. Mas não pode tudo.

O futebol já foi esporte. Hoje, é competição. Já foi arte. Hoje, é violência. Já foi fator de integração social. Hoje, acirra disputas entre torcidas enfurecidas. Os estádios, em dia de jogo, parecem penitenciárias em dia de visitas. Policiais por todos os lados, torcedores revistados, armas apreendidas.

Os jogadores mais se parecem atletas de luta-livre. Entram em campo para trucidar o adversário. Predomina a agressão verbal e física. As faltas não resultam da disputa de bola. São premeditadas e visam a imobilizar o adversário, de preferência mandá-lo para fora de campo ou mesmo para o hospital.

Os valores democráticos são negados pelo ethos guerreiro do futebol que se pratica hoje. Os times entram em campo imbuídos de espírito revanchista. Por trás de cada jogador há o jogo de poder dos cartolas. Os atletas valem pelo que representam monetariamente. São tratados como produtos de exportação. E, num mundo carente de heróis altruístas, eles ocupam o vácuo. São idolatrados, invejados, imitados.

Na cabeça de milhares de crianças e jovens, eis um modo de se tornar rico e famoso sem precisar dar duro nos estudos. Basta ter a habilidade de fazer a bola obedecer a vontade que se manifesta nos pés.

Gigante adormecido não é apenas o Brasil. É também a nossa seleção, desde a conquista do pentacampeonato. Agora ela acorda. Acorda para a Copa de 2014, que terá o Brasil como palco. Alguns bilhões de dólares estão em jogo. Por isso, o que parece uma simples partida entre dois times é, para cartolas e investidores, um laboratório destinado a transformar gatos em leões.

O Brasil não pode, em 2014, repetir o vexame de 1950. Naquela Copa, no jogo final, em pleno Maracanã, o Uruguai ganhou do Brasil por 1 X 0. Naquela época o futebol ainda era esporte. Os estádios não se pareciam a coliseus nem os atletas a gladiadores. E os cartolas torciam mais por seus times que por suas contas bancárias.

Bons jogadores não brotam de um dia para o outro. São preparados desde a infância. Os clubes mantêm escolinhas de futebol. Muitas exigem dos alunos frequência à escola formal e boas notas. Isso é bom. Mas não suficiente. Essas crianças deveriam também aprender o que significa ética nos esportes. Valores e direitos humanos. Para que, mais tarde, alucinadas pela fama e a fortuna, não se transformem em monstros suspeitos de cumplicidade com traficantes e de homicídios hediondos.

Alguém já refletiu em que medida o bullying, que tanto assusta as escolas, é reflexo do que se passa em nossos estádios? Onde falta educação campeia a perversão. Se a lei do mais forte é o que predomina aos olhos da multidão, como esperar uma atitude diferente de crianças e jovens carentes de exemplos de generosidade e solidariedade?

Nosso futebol, tão bom de bola, não estaria ruim da cabeça? Não teria se transformado num imenso cassino monitorado por quem angaria fortunas? Faz sentido, num país civilizado, atletas, símbolos de vida saudável, posarem de garotos-propaganda de bebidas alcoólicas?

Há que escolher entre Olímpia e Roma, maratona e coliseu. E conhecer a diferença entre os verbos disputar e aniquilar.

* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto - autobiografia escolar" (Ática), entre outros livros.

sábado, 25 de setembro de 2010

A pobreza da democracia brasileira

A pobreza da democracia brasileira
Leonardo Boff *

Tempos de campanha eleitoral oferecem ocasião para fazermos reflexões críticas sobre o tipo de democracia que predomina entre nós. É prova de democracia o fato de que mais de cem milhões tenham que ir às urnas para escolher seus candidatos. Mas isso ainda não diz nada acerca da qualidade de nossa democracia. Ela é de uma pobreza espantosa ou, numa linguagem mais suave, é uma "democracia de baixa intensidade" na expressão do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Por que é pobre? Valho-lhe das palavras de uma cabeça brilhante que, por sua vasta obra, mereceria ser mais ouvida, Pedro Demo, de Brasília. Em sua Introdução à sociologia (2002) diz enfaticamente:"Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis "bonitas", mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim. Político é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniquados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação"(p.330.333).

Essa descrição não é caricata, salvo as poucas exceções. É o que se constata dia a dia e pode ser visto pela TV e lido nos jornais: escândalos da depredação do bem público com cifras que sobem aos milhões e milhões. A impunidade grassa porque crime é coisa de pobre; o assalto criminoso aos recursos públicos é esperteza e "privilégio" de quem chegou lá, à fonte do poder. Entende-se porque, em contexto capitalista como o nosso, a democracia primeiro atende os que estão na opulência ou têm capacidade de pressão e somente depois pensa na população atendida com políticas pobres. Os corruptos acabaram por corromper também muitos do povo. Bem observou Capistrano de Abreu em carta de l924:"Nenhum método de governo pode servir, tratando-se de povo tão visceralmente corrupto com o nosso".

Na nossa democracia, o povo não se sente representado nos eleitos; depois de uns meses nem mais sabe em quem votou. Por isso não está habituado a acompanhá-lo e a fazer-lhe cobranças. Ao lado da pobreza material é condenado à pobreza política, mantida pelas elites. Pobreza política é o pobre não saber as razões de sua pobreza, é acreditar que os problemas dos pobres podem ser resolvidos sem os pobres, só pelo assistencialismo estatal ou pelo clientelismo populista. Com isso, se aborta o potencial mobilizador do povo organizado que pode exigir mudanças, temidas pela classe política, e reclamar políticas públicas que atendam a suas demandas e direitos.

Mas sejamos justos. Depois das ditaduras militares, surgiram em toda América Latina democracias de cunho social e popular que vieram de baixo e por isso fazem políticas para os de baixo, elevando seu nível. A macroeconomia capitalista segue mas tem que negociar. A rede de movimentos sociais, especialmente o MST, colocam o Estado sob pressão e sob controle, dando sinais de que a democracia pode melhorar.

Vejo dois pontos básicos a serem conquistados: primeiro, a proposta de Boaventura de Souza Santos que é de forjar uma "democracia sem fim", em todos os campos, especialmente na economia, pois aqui se instalou a ditadura dos patrões. Ela é mais que delegatícia, é um movimento aberto de participação, a mais ampla possível.

O segundo, é uma idéia que defendo há anos: a democracia não pode ser antropocêntrica, só pensando nos humanos como se vivêssemos nas nuvens e sozinhos, sem nos darmos conta de que comemos, bebemos, respiramos e estamos mergulhados na natureza da qual dependemos. Então, importa articular os dois contratos, o social com o natural; incluir a natureza, as águas as florestas, os solos, os animais como novos cidadãos que têm direitos de existir conosco, especialmente os direitos da Mãe Terra. Trata-se então de uma democracia sócio-cósmica, na qual os seres humanos convivem com os demais seres, incluindo-os e não lhes fazendo mal. O PT do Acre nos mostrou que isso é possível ao articular cidadania com florestania, quer dizer, a floresta respeitada e incluída no bem viver dos povos da floresta.

Utopia? Sim, no seu melhor sentido, mostrando o rumo para onde devemos caminhar daqui para frente, dadas as mudanças ocorridas no planeta e no encontro inevitável dos povos.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de A nova era: a civilização planetária, 2003.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Uma nova crítica teológica para um novo tempo

Uma nova crítica teológica para um novo tempo
Jung Mo Sung *

De uma forma ou de outra, setores - muitas vezes minoritários - das Igrejas cristãs sempre expressaram críticas às situações econômicas e sociais injustos e opressivos. Geralmente essas críticas eram feitas a partir dos valores éticos e teológicos ou em nome de algum texto ou ensinamento bíblico.

A grande novidade da Teologia da Libertação não foi, portanto, as críticas sociais em nome da fé cristã, mas sim a crítica às estruturas sociais que geravam as situações de injustiça social e dominação. Isto é, a TL foi para além das críticas às situações concretas e mostrou que essas situações não eram resultados somente de problemas éticos individuais ou de grupos, mas da própria lógica de funcionamento das estruturas econômicas, sociais e políticas.

No final dos anos 1960 e na década de 70, a TL dialogou com a teoria da dependência de inspiração marxista para explicar e criticar a situação social opressiva que predominava na AL e elaborou a noção de pecado social, que depois evoluiu para a noção de pecado estrutural. A partir da década de 80, a teoria da dependência entrou em profunda crise, ao mesmo tempo em que se fortalecia no cenário internacional a ideologia neoliberal, com as eleições de Margaret Tatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos da América. Diante desta nova configuração do capitalismo internacional, os discursos teológicos críticos elaborados em diálogo com a teoria da dependência foram perdendo significado e sua força crítica e operacional. Apesar disso, muitos teólogos/as e grupos e pastorais cristãos continuarão reproduzindo estes discursos, já meio ultrapassados, até como uma forma de manter a identidade de opositores ou de "revolucionários" desses grupos.

No final da década de 1980, o livro "A idolatria do mercado" (de Hugo Assmann e Franz Hinkelammert), entre outros, deu um novo impulso ao discurso teológico crítico ao desvendar o caráter idolátrico de um sistema que procurava absolutizar o sistema de mercado. Assim, nas duas últimas décadas a maior parte das críticas teológicas ou éticas cristãs ao capitalismo foi centrada na luta contra um sistema que pretendia impor a todo mundo e a todos os setores da vida humana e social a lógica e as leis do mercado. Uma proposta que Hinkelammert chamou de "a utopia de mercado total".

Com a crise do mercado financeiro internacional e a ameaça de recessão na economia global, os ideólogos do neoliberalismo estão perdendo os espaços de poder e sendo substituídos por defensores de um novo tipo de keynesianismo. Isto é, a ideologia do mercado livre está sendo substituída pelas propostas de regulação e da intervenção do Estado na economia de mercado em escala global.

Contudo, isso não significa o fim do capitalismo, pois esse existia antes do neoliberalismo e vai sobreviver à derrocada do neoliberalismo. O desafio para o cristianismo de libertação é não voltar a uma situação em que as críticas sociais em nome da fé eram feitas somente sobre situações concretas, perdendo de vista as lógicas e estruturas que as causam; ou então às críticas feitas a partir de fora da realidade econômico-social, em nome somente de valores éticos ou teológicos (não importa se são tradicionais, "pós-modernos" ou algum outro tipo), sem uma articulação crítica e dialética com teorias sociais. É claro que também não podemos simplesmente continuar repetindo as críticas elaboradas nos anos 1980 e 90.

Estamos diante de um importante desafio: analisar criticamente as novas propostas econômicas e ideologias que estão sendo gestados neste momento e elaborar uma reflexão teológica crítica que seja ao mesmo tempo teologicamente consistente e socialmente relevante.

As reflexões críticas à idolatria do mercado foram construídas principalmente em torno da "Escola do DEI", uma escola de pensamento que se formou em torno do Departamento Ecumênico de Investigações, de Costa Rica, e de seus inúmeros seminários e congressos reunindo cientistas sociais, filósofos e teólogos/as. Uma teoria crítica não é produto somente da mente brilhante de um indivíduo, mas de um trabalho coletivo. Isto significa que precisamos urgentemente de redes e centros catalisadores capazes de promover diálogos e trabalhos interdisciplinares visando construir uma teologia crítica para fazer frente à nova forma de dominação capitalista que está sendo gestada.

*Jung Mo Sung é professor. Autor de "Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social", Ed. Paulus.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ainda somos muito desiguais

Ainda somos muito desiguais
Marcus Eduardo de Oliveira *


O fator desigualdade no desenvolvimento humano continua a ser a pedra no sapato dos brasileiros. Entre os países da América Latina, estamos na nona posição no ranking que mede essa desigualdade. Esse é o resultado do último estudo divulgado pela ONU-Pnud, com base em dados de 2006.

O IDH-D (Índice de Desenvolvimento Humano ajustado à Desigualdade) que considera a renda per capita domiciliar; a taxa de alfabetização e os anos de estudos das pessoas de 7 anos ou mais e, o acesso a água potável e adequadas condições de higiene, destacando-se o acesso a banheiro nos domicílios, mostram o Brasil com um índice de 0,629, portanto, na condição de país de desenvolvimento médio (de 0,500 a 0,800).

Numa escala de 0 a 1, o IDH-D aponta que quanto mais próximo de 1, como são os casos de Argentina (0,842) e Uruguai (0,834), melhor é a situação, com pouca desigualdade nos quesitos estudados. No outro extremo, quanto mais próximo de zero, pior é a condição social, como são os casos de Honduras (0,382) e Nicarágua (0,288).

Pois bem. Diante desses dados uma questão se impõe como pertinente: o crescimento econômico em si não resolve a questão da desigualdade social. Crescer economicamente não significa (e nunca significou) que a vida das pessoas mais necessitadas irá melhorar, embora seja o crescimento da economia um fator benéfico no conjunto das opções a favor da busca de bem-estar. Lembremos, nesse pormenor, que de 1870 a 1980, o PIB brasileiro cresceu mais de 150 vezes; no entanto, nesse mesmo período de tempo, excluídos os contratempos e sobressaltos políticos e econômicos, a vida dos brasileiros, em termos de melhoria substancial na qualidade de vida, não acompanhou esse forte crescimento do produto.

Ademais, ainda que a renda per capita dos brasileiros mais pobres, de 2000 a 2008, tenha crescido 72%, o IDH-D nos coloca na incômoda posição de sermos muito desiguais, o que ressalta, grosso modo, a relação conflituosa entre os campos econômico e social, contribuindo para a latente desigualdade. E somos desiguais basicamente pela deficiência de ajustar o crescimento da economia em termos de distribuição equitativa da renda, e de nos negarmos a enfrentar o desafio de conjugar mercado e virtudes civis, visando construir uma economia com eficiência, de característica tipicamente solidária.

Continuamos desiguais, pois não aproveitamos a potencialidade econômica de um país dono da quinta maior extensão territorial do mundo em favor de um programa de produção de alimentos para o consumo doméstico; ao contrário: preferimos adoçar a boca dos estrangeiros com a exportação de alimentos e vitaminas. Continuamos desiguais, pois não criamos ainda uma cultura de subordinar a economia aos objetivos sociais. Continuamos desiguais, pois, depois de mais de 500 anos de história econômica e política, ainda temos políticas econômicas desenhadas apenas para fazer a riqueza subir, e não para fazer a pobreza se reduzir a zero, entendendo que a pobreza um dia acabará enquanto a riqueza está aumentando. É por isso que ainda somos um país paradoxal: um país rico com uma triste e dramática pobreza vinculada a um elevado grau de desigualdade.

Definitivamente, só vamos diminuir essa desigualdade e eliminar os focos de pobreza quando a economia for direcionada para produzir tudo aquilo que elimina o estado de pobreza, ou seja, escola pública de qualidade, saúde pública confiável, saneamento básico, água potável, cultivar a terra e eliminar o latifúndio, coletar o lixo das ruas, e permitir com que cada brasileiro carente tenha possibilidade de comprar arroz, feijão e o bife para o fim de semana.


* Marcus Eduardo de Oliveira:Economista brasileiro, especialista em Política Internacional. Articulista do site "O Economista", do Portal EcoDebate e da Agência Zwela de Notícias (Angola)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Duas cosmologias em conflito

Duas cosmologias em conflito
Leonardo Boff *

O prêmio Nobel em economia Joseph Stiglitz disse recentemente: "O legado da crise econômico-financeiro será um grande debate de idéias sobre o futuro da Terra". Concordo plenamente com ele. Vejo que o grande debate será em torno das duas cosmologias presentes e em conflito no cenário da história.

Por cosmologia entendemos a visão do mundo -cosmovisão- que subjaz às idéias, às práticas, aos hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Cada cultura possui sua respectiva cosmologia. Por ela se procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo e definir o lugar do ser humano dentro dele.

A nossa atual é a cosmologia da conquista, da dominação e da exploração do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta cosmovisão, criaram-se inegáveis benefícios para a vida humana, mas também contradições perversas como o fato de que 20% da população mundial controlar e consumir 80% de todos os recursos naturais, gerando um fosso entre ricos e pobres como jamais havido na história. Metade das grandes florestas foram destruídas, 65% das terras agricultáveis, perdidas, cerca de 5 mil espécies de seres vivos anualmente desaparecidas e mais mil agentes químicos sintéticos, a maioria tóxicos, lançados no solo, no ar e nas águas. Construíram-se armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda vida humana. O efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se chegará a 2 graus Celsius, e se nada for feito, segundo certas previsões, serão no final do século 4 ou 5 graus, o que tornará a vida, assim como a conhecemos hoje, praticamente impossível.

A predominância dos interesses econômicos especialmente especulativos, capazes de reduzirem países à mais brutal miséria e o consumismo trivializaram nossa percepção do risco sob o qual vivemos e conspiram contra qualquer mudança de rumo.

Em contraposição, está comparecendo cada vez mais forte, uma cosmologia alternativa e potencialmente salvadora. Ela já tem mais de um século de elaboração e ganhou sua melhor expressão na Carta da Terra. Deriva-se das ciências do universo, da Terra e da vida. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de evolução que se iniciou a partir do big-bang, há cerca de 13,7 bilhões de anos. O universo está continuamente se expandindo, se auto-organizando e se autocriando. Seu estado natural é a evolução e não a estabilidade, a transformação e a adaptabilidade e não a imutabilidade e a permanência. Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. Por isso todos os seres são interdependentes e colaboram entre si para coevoluirem e garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Por detrás de todos os seres atua a Energia de fundo que deu origem e anima o universo e faz surgir emergências novas. A mais espetacular delas é a Terra viva e nós humanos como a porção consciente e inteligente dela e com a missão de cuidá-la.

Vivemos tempos de urgência. O conjunto das crises atuais está criando uma espiral de necessidades de mudanças que, não sendo implementadas, nos conduzirão fatalmente ao caos coletivo e que assumidas, nos poderão elevar a um patamar mais alto de civilização. É neste momento que a nova cosmologia se revela inspiradora. Ao invés de dominar a natureza, nos coloca no seio dela em profunda sintonia e sinergia. Ao invés de uma globalização niveladora das diferenças, nos sugere o biorregionalismo que valoriza as diferenças. Este modelo procura construir sociedades autossustentáveis dentro das potencialidades e dos limites das biorregiões, baseadas na ecologia, na cultura local e na participação das populações, respeitando a natureza e buscando o "bem viver" que é a harmonia entre todos e com a mãe Terra.

O que caracteriza esta nova cosmologia é o cuidado no lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida e os direitos e a dignidade da natureza e não sua exploração.

A força desta cosmologia reside no fato de estar mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se optarmos por ela, criar-se-á a oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade. Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Junto com Mark Hathaway, escreveu o livro The Tao of Liberation. Exploring the Ecology of Transformation, N.Y. 2009

terça-feira, 4 de maio de 2010

Por uma nova esquerda - entrevista com Ruy Fausto

"É preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda menos"

Aos 75 anos, o filósofo Ruy Fausto lamenta não ter tempo para realizar seus projetos. O autor de "Marx: Lógica e Política" (Editora 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (Paz e Terra) luta por uma refundação do pensamento de esquerda. O primeiro compromisso da esquerda deve ser com a democracia e o segundo, com o combate à corrupção. Só depois vem a crítica ao capitalismo, defende. Neste tempo em que tanto o comunismo quanto o neoliberalismo entraram em crise, o tempo é de balanço.

Para promover suas ideias de uma nova esquerda, Ruy Fausto prepara o lançamento de uma revista eletrônica. O nome será "Fevereiro", em homenagem às revoluções de 1848, à primeira revolução russa de 1917 e ao levante de Kronstadt (1921), quando marinheiros e operários foram massacrados pelos bolcheviques. "É claro que é uma provocação", afirma. "Já que tem tanta Outubro por aí, esta é 'Fevereiro'."

Nascido em São Paulo e irmão do historiador Boris Fausto, o filósofo foi militante trotskista na juventude, antes de se exilar em Paris, em 1968. Na França, terminou sua tese e lecionou na Universidade Paris 8. Professor emérito da USP, Fausto se entusiasma com o crescimento dos partidos verdes na Europa e prevê catástrofes ecológicas que obrigarão a humanidade a repensar o capitalismo. "Estou na posição cômoda de quem não vai viver para ver isso, mas vocês, jovens, terão de enfrentar o problema."

Ex-petista desde o escândalo do mensalão, Fausto avalia que, em matéria econômica, a era Lula manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo o presidente da República tomou medidas favoráveis aos mais pobres. "Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia", comenta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em Paris.

O senhor rompeu como PT logo no começo da crise do mensalão. Hoje, que a "era Lula" está acabando, como avalia o período, do ponto de vista da história?

Ruy Fausto: É importante que se tenha eleito para a Presidência um líder sindical com a história de Lula. Ele fez um governo curioso: em matéria econômica manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo tomou medidas favoráveis aos mais pobres. Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia. É nessa base que se assenta seu prestígio no exterior. Acho que se fizeram coisas positivas no governo Lula. Creio que houve avanços em matéria de educação, e o Bolsa Família, mesmo se é uma medida emergencial, dá algum respiro à população mais pobre.

A economia avança, mas os problemas continuam sendo enormes: violência, caos urbano, desigualdade. Importante é que se impõe a ideia de que devemos resolver o problema do conjunto da população. Sob o governo anterior, dizia-se que "a situação econômica" permitia resolver o problema de uma parte da camada mais pobre, mas as outras... Isso acabou. A exigência de justiça social, pelo menos como ideia, se impõe. Mas o PT acabou mergulhando no pior da política brasileira. E houve até o risco de ter um José Dirceu na Presidência.


A decepção é com o PT?


Fausto: Ainda penso que o PT tem interesse. Lá existe gente boa e também, digamos, algumas figuras razoáveis, com gente muito, muito ruim. Aprecio o Fernando Haddad [ministro da Educação], que faz um trabalho sério, nos limites do possível. E se um dia conseguíssemos lançar alguém como ele como candidato à Presidência, a partir de um movimento de base não comprometido demais com o PT? Não se subestimem essas jogadas históricas: seja qual for o futuro de seu governo, o caso Obama mostra como o improvável pode se efetuar.

Afinal, qual é o balanço dessa esquerda no poder?

Fausto: No início, a prudência de tipo ortodoxo era necessária, mas eles poderiam ter avançado depois. E não me agrada a política externa. Não é possível fazer o elogio do escândalo sangrento em que culminaram as eleições iranianas. O governo Lula professa, apesar de tudo, um terceiro-mundismo rançoso, como se vê por sua atitude em relação a Fidel Castro e Hugo Chávez. É hora de acabar com isso, o que não significa, muito pelo contrário, deixar de criticar o capitalismo. Já o problema da corrupção foi esvaziado com o argumento banal da crítica do "moralismo". Numa certa esquerda, como a solução é o comunismo triunfante, a corrupção aparece como epifenômeno do capitalismo. Mas quando cai a ideia do comunismo, a luta contra a corrupção aparece como um objetivo que, para usar a velha linguagem, se tornou estratégico. É tão essencial quanto a democracia. E vamos cutucar o capitalismo, pensar em como enfrentá-lo. É questão de invenção, o que é ótimo. Superar ideias antigas é, em primeiro lugar, um projeto intelectual, mas também é política.

Depois de 1989, a esquerda ficou abalada; depois de 2008, quem se abalou foi a direita. Há uma esquerda pronta para responder às questões de hoje?

Fausto: A derrota de 1989 não foi da esquerda, mas do chamado "comunismo". Para entender isso, é preciso refazer a história do bolchevismo. O que caiu - embora tivesse mudado, em alguma medida - era trabalho escravo, genocídio, despotismo. Outubro de 1917 foi algo muito duvidoso. Em três meses, todos, até os operários, estavam contra os bolcheviques. Por três anos, houve massacres, greves, revoltas, até que veio o levante de Kronstadt. A explicação pelas "condições" não explica quase nada. Com a queda do bolchevismo, a esquerda se livrou de uma hipoteca insustentável. Fala-se da perda de "conquistas". Não houve conquistas; houve alguns avanços, mas fragilizados pelo quadro totalitário e pagos ao preço de regressões históricas enormes, que redundaram num déficit histórico global imenso.

A esquerda está numa boa posição para dar as respostas?

Fausto: As dificuldades são grandes, principalmente em termos de meios. Mas os fins não são obscuros e utópicos como eram, digamos, há 40 anos. A primeira coisa a saber é que um projeto de sociedade é preciso. Antigamente, supunha-se que não era nem se devia formulá-lo, sob pena de utopismo: a "história" se encarregava, e já teria se encarregado, disso. Hoje, sabemos que a "história" não se encarrega de nada, em geral, e quando se "encarrega" pode vir o pior. Em matéria de projetos, não há mil alternativas. Sim aos direitos democráticos, ao Estado, ao direito e também à propriedade privada. Resta o problema mais difícil: o capitalismo. É preciso distinguir - Karl Marx [1818-1883] o fazia, mas de outro jeito - o capitalismo, de um lado, e a existência de mercadoria e dinheiro, de outro. É muito problemático, como ser e como dever ser, propor o fim da mercadoria e do dinheiro. Mas ao mesmo tempo é duvidoso que o capitalismo, busca frenética do lucro, subsista eternamente.

O que o senhor propõe concretamente?

Fausto: Queremos uma sociedade democrática, muito democrática. Quanta escória antidemocrática subsiste nas sociedades ocidentais! Depois, uma sociedade muito igualitária, mas não absolutamente igualitária. Terceiro, uma sociedade em que, havendo mercadoria e dinheiro, o capital seja freado de algum modo. Para isso, existem alguns meios: imposto de renda realmente diferenciado, desenvolvimento de cooperativas, ação do Estado nos setores fundamentais. Além do que se pode fazer no plano internacional. É preciso tirar da cabeça a ideia nefasta de que um projeto político de esquerda, nos seus objetivos finais pelo menos, vá fazer descer o céu sobre a Terra. Quem quer fazê-lo acaba descendo ao inferno.

O Hegel [1770-1831] maduro tem razão, a seu modo, quando deixa de pôr o absoluto na cidade. Também Platão, quando passa da República às Leis. Quem quer o infinito, ou procura absolutos, que pesquise por outros lados que não os da política: por exemplo, na arte ou no amor. Mas há ainda dois problemas: um é o Terceiro Mundo, com sua carga de miséria e também, às vezes, de fanatismo fundamentalista.

O outro são as questões ecológicas. Nisso, vejo uma dupla ameaça: crônica, de certo modo, com o uso multiplicado das energias fósseis; e aguda, com a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Mas como intervir no mundo atual? E aí aparecem outras questões: a emergência da China, por exemplo. Pouca gente na esquerda e na direita se preocupa suficientemente com o fato de que a possível futura maior economia do mundo seja um país semitotalitário. Mas a primeira coisa para enfrentar esses desafios, condição necessária ainda que insuficiente, é repensar os fundamentos da política da esquerda.

Há um vazio no pensamento da esquerda?

Fausto: De certo modo. Mas não vejo aí motivo de desespero. O pensamento universitário é, em geral, impotente para enfrentar esses desafios. E é também impotente o pensamento daqueles que professam um revolucionarismo de outro tempo, como se o século 20 fosse um parêntese a ser eliminado. Isso é comum entre economistas, filósofos e cientistas políticos de extrema esquerda. Eu os convidaria a abrir o livro do século 20 e não nas páginas em que se fala do capitalismo (democrático ou autoritário), mas nas que falam do seu outro. Há quase cem anos de literatura histórica e crítica a respeito. Quanto aos autores que, num plano mais geral, poderiam nos servir como ponto de partida, citaria o [Theodor] Adorno [1903-1969] da "Dialética Negativa", [Cornelius] Castoriadis [1903-1997] certamente e também Claude Lefort.

Por onde passa a renovação do pensamento de esquerda?

Fausto: Primeiro, por um banho de história. É impossível fazer qualquer coisa enquanto a maioria acreditar na versão leninista da história do século 20, um pouco menos ruim do que a stalinista, mas hoje muito mais nefasta, já que na mitologia stalinista quase ninguém mais acredita. A segunda coisa é a crítica do anti-humanismo renascente, crítica que tem de ser feita fora dos quadros do humanismo. A terceira é uma teoria crítica das formas políticas. A universidade, em ampla medida, passa ao largo desse programa, principalmente no Brasil.

O senhor critica o anti-humanismo dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek. Mas o humanismo clássico foi apontado como responsável pelas atrocidades do século XX. O que podemos contrapor ao anti-humanismo hoje?

Fausto: O primeiro problema é definir o humanismo: ele aparece como recusa da violência e como filosofia dos direitos do homem. A partir de Marx (não sou marxista), se pôde ter a ideia, que vem, em última instância, de Hegel, de que o humanismo pode cair no seu contrário (num mundo de violência, propor a não violência implica violência), mas que o anti-humanismo não é solução. O humanismo fundamenta a ética (o que, apesar das aparências, tem suas dificuldades); o anti-humanismo elimina todo fundamento, o que é ainda mais problemático. Mas é preciso ir além. As dificuldades do esquema clássico são duas. Primeiro, é preciso repensar as relações entre meios e fins à luz da história contemporânea. Depois, é preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda menos.

E quanto ao humanismo como dominação?

Fausto: Isso é fruto de uma identificação entre humanismo de um lado, e visão prometeica-cartesiana de outro. Com isso, é fácil passar da dominação da natureza à dominação do homem, daí o humanismo ser responsabilizado pelos horrores do século 20. Essa tese, muito difundida, que às vezes põe no banco dos réus até o kantismo, é falsa. Houve duas filosofias expressamente humanistas na história: a de [Ludwig] Feuerbach [1804-1872] e a do jovem Marx (o velho Marx é outra coisa). Neles, não há prometeísmo nem dominação da natureza, mas um discurso humanista e também naturalista, muito marcado por Schiller. Anuncia, à sua maneira, o discurso ecologista. Para além do problema histórico, é fácil perceber que os totalitarismos são ao mesmo tempo prometeicos e anti-humanistas. Infelizmente, não posso desenvolver muito, aqui, este tema.

O iluminismo, então, não é humanista?

Fausto: Há muita coisa por trás da ideia de "iluminismo" que precisa ser desconstruída. São ao menos três elementos: razão, progresso e direitos do homem. Esses três elementos não funcionam (e não funcionaram, historicamente) do mesmo modo.

Como podemos conceber o homem?

Fausto: É preciso pensá-lo como repositório de possíveis. Uma "antropologia dialética", como diziam os frankfurtianos (tão mal utilizados hoje, especialmente no Brasil). Nem o humanismo nem o anti-humanismo, nem mesmo a recusa dos dois nos termos da dialética clássica, nos levam a um bom resultado.