"A esquerda do século XXI deve se basear na democracia como valor universal. Nenhuma conquista, nenhum objetivo estratégico, nenhuma revolução, se justifica fora dos marcos radicais da democracia." (Roberto Freire)
Segundo o cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país, "ditadura do proletariado foi um dos termos menos felizes de Marx", o que concordo plenamente. Entretanto, como felizmente o capitalismo deixou de ser a "ditadura da burguesia", se democratizando em virtude da socialização da política ocorrida a partir da segunda metade do século XIX(adoção do sufrágio universal, legalização dos sindicatos e do direito de greve, criação e legalização de partidos operários de massa, etc), a esquerda finalmente pode abandonar a defesa da ditadura do proletariado, assumindo em seu lugar a defesa da democracia como valor universal.
A socialização da política que promoveu a democratização do capitalismo, foi obtida graças as lutas heróicas do movimento operário e popular, portanto não faz o menor sentido desqualificar a democracia com o uso de termos como "democracia burguesa", ou "democracia de direita". A democracia é um valor universal e a esquerda precisa erguer essa bandeira, caso realmente queira romper com os graves erros que degeneraram o socialismo no século passado.
"Por um lado, a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade) - uma passagem amplamente teorizada por Marx no Livro 1 de O Capital, publicado em 1867 - alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas mais institucionalizadas, que não podem ser equiparadas a uma "guerra civil". E, por outro lado, em estreita correlação com essa alteração infra-estrutural, ocorreu uma crescente "socialização da política" (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa), a qual forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não os da classe dominante, com o que - sem deixar de ser um Estado de classe - ele não mais pode ser definido como um mero "comitê executivo" da burguesia. Ao lado da coerção, gestaram-se também mecanismos de tipo consensual. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada não mais sob a forma de uma "explosão violenta" concentrada num curto lapso de tempo, como ainda o faz o Manifesto, mas sim de um movimento processual, de longa duração, que opera nos espaços progressivamente abertos pelas instituições liberal-democráticas (as quais, de resto, resultam em grande parte das lutas dos trabalhadores)."
(Carlos Nelson Coutinho, em "Grandezas e Limites do Manifesto Comunista")
A esquerda do século XXI precisa ser democrática, precisa ter consciência ecológica e defender a luta em favor da preservação do meio ambiente.
As esquerdas precisam de biologia
Leonardo Boff*
Em geral, são as esquerdas que utilizam a categoria de classe social para o entendimento da sociedade, principalmente de seus conflitos e dos mecanismos de exploração de uns sobre outros a partir do lugar que cada um ocupa no processo produtivo. Esta categoria ajudou a mostrar a desumanização que multidões padecem e as formas de como enfrentá-las para que não se perpetuem e se possa construir relações que permitam o ser humano tratar humanamente a seus semelhantes. Mas a classe, por imprescindível, é insuficiente para dar conta da complexidade da sociedade. Importa inseri-la dentro de uma realidade maior, subjacente a todos os fenômenos sociais: sua base biológica. Sem a garantia da base biofísica e ecológica da vida, os problemas ficam dependurados no ar. Importa entender que sociedade e meio ambiente são interdependentes, partes inseparáveis de um único processo evolucionário e planetário. A atividade biológica representa uma propriedade de Gaia, que inclui os seres vivos, especialmente os humanos e sua infra-estrutura físico-química-informacional, expressões de um todo vivo e sistêmico. Dai que o pacto social deve ser articulado com o pacto natural. Não se pode também olvidar a segunda lei da termodinâmica, a entropia, o desgaste lento e irrefreável do uso de energia até seu esgotamento total na morte térmica. Quanto mais acelerarmos o processo produtivo e quanto mais consumirmos, mais gastamos energia e assim fazemos aumentar a entropia. O ser humano não pode deter a entropia mas pode desacelerá-la, favorecendo formações sociais com menos uso e desperdício de energia, prolongando assim o tempo de sobrevivência pessoal e coletiva.
Da consciência de classe devemos passar à consciência de espécie, da classe social à biologia social. A consciência de espécie é fundamental na relação ser humano-natureza. De nosso comportamento coletivo face às questões ligadas à biologia como a biodiversidade ameaçada, a escassez dos recursos, o crescente aquecimento global, atestado agora pelo IPCC, o problema demográfico angustiante e as questões das armas de destruição em massa, depende a sobreviência de nossa espécie homo. Esta questão ultrapassa a classe social, pois a ameaça atinge indistintamente a todos. Todavia, há que se reconhecer com os marxistas que a diminuição da desigualdade e a justiça societária são precondições para o equilíbrio sócio-ecológico que retarda os efeitos da entropia.
Jean-Paul Sartre, numa entrevista, pouco antes de morrer, ao jornal italiano La Repubblica de 14 de abril de 1980 talvez nos ajude a entender a questão. Fala da origem biológica comum e do fim da espécie humana. Diz ele:"Não somos seres humanos completos. Somos seres que se dabatem para estabelecer relações humanas e para chegar a uma definição de ser humano. É uma luta longa que consiste em procurarmos viver juntos humanamente. É pois, mediante esta busca, que não tem nada a ver com o humanismo, que podemos considerar o nosso fim. Em outras palavras, nosso fim é alcançar um corpo constituido no qual cada um se sinta ser humano e uma coletividade que se sinta também humana".
Numa linguagem da cultura humanística ele diz a mesma coisa que dissemos acima na linguagem da biologia. Falta-nos muito ainda para sentirmo-nos parte da natureza e tratarmos humanamente os humanos. Caso contrário, corremos o risco de conhecer o caminho já percorrido pelos dinossauros.
*Leonardo Boff - teólogo e filósofo, autor do clássico "Igreja, Carisma e Poder".
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