quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Esquerda democrática e ecológica

"A esquerda do século XXI deve se basear na democracia como valor universal. Nenhuma conquista, nenhum objetivo estratégico, nenhuma revolução, se justifica fora dos marcos radicais da democracia." (Roberto Freire)

Segundo o cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país, "ditadura do proletariado foi um dos termos menos felizes de Marx", o que concordo plenamente. Entretanto, como felizmente o capitalismo deixou de ser a "ditadura da burguesia", se democratizando em virtude da socialização da política ocorrida a partir da segunda metade do século XIX(adoção do sufrágio universal, legalização dos sindicatos e do direito de greve, criação e legalização de partidos operários de massa, etc), a esquerda finalmente pode abandonar a defesa da ditadura do proletariado, assumindo em seu lugar a defesa da democracia como valor universal.

A socialização da política que promoveu a democratização do capitalismo, foi obtida graças as lutas heróicas do movimento operário e popular, portanto não faz o menor sentido desqualificar a democracia com o uso de termos como "democracia burguesa", ou "democracia de direita". A democracia é um valor universal e a esquerda precisa erguer essa bandeira, caso realmente queira romper com os graves erros que degeneraram o socialismo no século passado.

"Por um lado, a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade) - uma passagem amplamente teorizada por Marx no Livro 1 de O Capital, publicado em 1867 - alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas mais institucionalizadas, que não podem ser equiparadas a uma "guerra civil". E, por outro lado, em estreita correlação com essa alteração infra-estrutural, ocorreu uma crescente "socialização da política" (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa), a qual forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não os da classe dominante, com o que - sem deixar de ser um Estado de classe - ele não mais pode ser definido como um mero "comitê executivo" da burguesia. Ao lado da coerção, gestaram-se também mecanismos de tipo consensual. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada não mais sob a forma de uma "explosão violenta" concentrada num curto lapso de tempo, como ainda o faz o Manifesto, mas sim de um movimento processual, de longa duração, que opera nos espaços progressivamente abertos pelas instituições liberal-democráticas (as quais, de resto, resultam em grande parte das lutas dos trabalhadores)."

(Carlos Nelson Coutinho, em "Grandezas e Limites do Manifesto Comunista")


A esquerda do século XXI precisa ser democrática, precisa ter consciência ecológica e defender a luta em favor da preservação do meio ambiente.


As esquerdas precisam de biologia
Leonardo Boff*

Em geral, são as esquerdas que utilizam a categoria de classe social para o entendimento da sociedade, principalmente de seus conflitos e dos mecanismos de exploração de uns sobre outros a partir do lugar que cada um ocupa no processo produtivo. Esta categoria ajudou a mostrar a desumanização que multidões padecem e as formas de como enfrentá-las para que não se perpetuem e se possa construir relações que permitam o ser humano tratar humanamente a seus semelhantes. Mas a classe, por imprescindível, é insuficiente para dar conta da complexidade da sociedade. Importa inseri-la dentro de uma realidade maior, subjacente a todos os fenômenos sociais: sua base biológica. Sem a garantia da base biofísica e ecológica da vida, os problemas ficam dependurados no ar. Importa entender que sociedade e meio ambiente são interdependentes, partes inseparáveis de um único processo evolucionário e planetário. A atividade biológica representa uma propriedade de Gaia, que inclui os seres vivos, especialmente os humanos e sua infra-estrutura físico-química-informacional, expressões de um todo vivo e sistêmico. Dai que o pacto social deve ser articulado com o pacto natural. Não se pode também olvidar a segunda lei da termodinâmica, a entropia, o desgaste lento e irrefreável do uso de energia até seu esgotamento total na morte térmica. Quanto mais acelerarmos o processo produtivo e quanto mais consumirmos, mais gastamos energia e assim fazemos aumentar a entropia. O ser humano não pode deter a entropia mas pode desacelerá-la, favorecendo formações sociais com menos uso e desperdício de energia, prolongando assim o tempo de sobrevivência pessoal e coletiva.

Da consciência de classe devemos passar à consciência de espécie, da classe social à biologia social. A consciência de espécie é fundamental na relação ser humano-natureza. De nosso comportamento coletivo face às questões ligadas à biologia como a biodiversidade ameaçada, a escassez dos recursos, o crescente aquecimento global, atestado agora pelo IPCC, o problema demográfico angustiante e as questões das armas de destruição em massa, depende a sobreviência de nossa espécie homo. Esta questão ultrapassa a classe social, pois a ameaça atinge indistintamente a todos. Todavia, há que se reconhecer com os marxistas que a diminuição da desigualdade e a justiça societária são precondições para o equilíbrio sócio-ecológico que retarda os efeitos da entropia.

Jean-Paul Sartre, numa entrevista, pouco antes de morrer, ao jornal italiano La Repubblica de 14 de abril de 1980 talvez nos ajude a entender a questão. Fala da origem biológica comum e do fim da espécie humana. Diz ele:"Não somos seres humanos completos. Somos seres que se dabatem para estabelecer relações humanas e para chegar a uma definição de ser humano. É uma luta longa que consiste em procurarmos viver juntos humanamente. É pois, mediante esta busca, que não tem nada a ver com o humanismo, que podemos considerar o nosso fim. Em outras palavras, nosso fim é alcançar um corpo constituido no qual cada um se sinta ser humano e uma coletividade que se sinta também humana".

Numa linguagem da cultura humanística ele diz a mesma coisa que dissemos acima na linguagem da biologia. Falta-nos muito ainda para sentirmo-nos parte da natureza e tratarmos humanamente os humanos. Caso contrário, corremos o risco de conhecer o caminho já percorrido pelos dinossauros.

*Leonardo Boff - teólogo e filósofo, autor do clássico "Igreja, Carisma e Poder".

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