quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A esquerda diante do século XXI

Marco Aurélio Nogueira - Março 2006

Ainda que digam que esquerda e direita não têm mais sentido e que nem sempre se consiga visualizar na prática as distinções entre elas, não há argumentos sólidos para sustentar que a esquerda desapareceu ou que a polarização direita-esquerda não tenha presença decisiva na política atual.

Tanto que, quando as pessoas observam alguns recentes acontecimentos políticos na América Latina, logo alguém levanta a hipótese de que se estaria assistindo a uma guinada à esquerda no continente. Também é em termos de direita e esquerda que são avaliados os candidatos que disputarão as próximas eleições, aqui e alhures. Em Direita e Esquerda (Editora Unesp), que fez muito sucesso anos atrás e continua atualíssimo, o filósofo italiano Norberto Bobbio disse isso com todas as letras, de modo insuspeito.

Tal fato não significa, porém, que a esquerda esteja em ascensão ou no melhor da forma física e intelectual.

Ainda que não possam ter sua importância diminuída, a eleição de Evo Morales na Bolívia e a de Michelle Bachelet no Chile, a força de Chávez na Venezuela, os avanços democráticos na Argentina, no Brasil e no Uruguai se devem mais ao cansaço das pessoas com as políticas neoliberais e com a mediocridade da classe política tradicional do que a uma ascensão categórica da esquerda. Refletem a permanência de antigos problemas, a esperança dos mais pobres e muitas lutas por reconhecimento, mais que vitórias de uma esquerda sustentável. Não podem ser lidos de modo unilateral.

O sucesso da esquerda depende da sua capacidade de ser uma força democrática de transformação e, portanto, de se autotransformar o tempo todo: ter orgulho de suas tradições e de seus vínculos de classe mas ser ágil e generosa para incorporar criticamente as novidades da vida e dialogar com as complexas realidades do século XXI.

Para ela, não se trata de "chegar ao poder" ou de "tomar o Estado de assalto", mas de elaborar novas maneiras de organizar a convivência e compartilhar poderes. Trata-se de pensar em mudanças estruturais, em uma nova economia, em uma ordem social igualitária, mas também de dar o devido destaque aos direitos, às liberdades, à educação, à cultura, à vida concreta dos indivíduos, que é onde, muitas vezes, se ocultam as piores perversidades e as maiores resistências ao desenvolvimento democrático e social. Para isso, é preciso confrontar os diferentes poderes que nos cercam e nos controlam: conceber um novo Estado, levar a política para todos os espaços onde pulsa a vida, se disputa e se sofre a dominação.

Hoje a esquerda é um campo teórico-político em crise. Está dividida entre a "responsabilidade fiscal" e o populismo, a ação e a institucionalização, o político e o social. Não tem um vetor programático consistente, um projeto para o século XXI, uma identidade que corresponda às novas determinações do jogo social em condições de modernidade reflexiva e radicalizada. Nem sempre consegue dizer algo que sensibilize e mobilize os mais pobres, os jovens, os cidadãos das distintas classes sociais. Ou seja, ainda não conseguiu traduzir em termos teóricos e de ação política as circunstâncias do capitalismo globalizado e da sociedade que está nascendo das novas conexões, da dissolução progressiva das formas tradicionais de vida.

A esquerda enfrenta desafios complicados. Dadas as condições de alta complexidade, precisa aprender a ser democrática e responsável sem perder a radicalidade. Ela existe para regular o mercado e combater as formas abusivas de propriedade privada, a concentração de renda, a exploração, a desigualdade. Mas seu coração não é estreitamente material, econômico-social, duramente coletivista: está aberto para todos os temas do humano, para os homens e as mulheres de carne e osso, para seus direitos e suas liberdades, suas carências e seus desejos. É um coração marcado pela pluralidade temática e pela recusa à simplificação.

A esquerda é mais que um estado de espírito, é uma força política. Por isso, precisa sempre agir para frear a corrente desilusão social com a política: recriar o modo de pensar e praticar a política, os partidos, os movimentos, as instituições representativas. Para ela, participação e representação, ação e institucionalização, movimento e gestão, "guerra" e "posição" não são termos antitéticos, mas complementares. Caminhos por fora da legalidade institucional não se mostram capazes de fazer com que as reformas avancem, mas o puro jogo parlamentar e eleitoral é limitado demais. A democracia – com seus tempos longos, suas regras, seu pluralismo, seus conflitos – continua a ser o principal companheiro de viagem da esquerda, sua primeira e mais importante pele, o centro de seu projeto.

Também por isso, a esquerda do século XXI precisar recuperar o tema da reforma democrática do Estado, para assim recolocar o Estado no centro da vida social não como agente burocrático e aparato de intervenção, mas como garante e referência do contrato social. Uma sociedade "regulada pelo mercado" e pela livre competição dos agentes sociais não oferece uma imagem confiável do futuro, tanto quanto uma sociedade sufocada e dirigida pelo aparelho de Estado.

Tendo em vista a opacidade atual, a esquerda tem de descobrir como se diferenciar da direita e do centro: fazer política com identidade. Não superará sua crise se simplesmente caminhar para o centro, se se associar aos moderados em nome da governabilidade e aceitar a agenda dominante em nome da "cautela", da "estabilidade" ou do "desenvolvimento". Um capitalismo com rosto humano, o respeito às regras da democracia, a competência para ganhar eleições e a interpelação do social não bastam para relançar a esquerda, ainda que sejam compromissos fundamentais.

É por tudo isso que a esquerda se mantém viva e é indispensável.


Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 25 março de 2006.

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