sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Terceirização das culpas

Terceirização das culpas
Mauro Chaves

Nos últimos tempos tem-se observado no Brasil uma verdadeira revolução ética: é a terceirização das culpas, fruto da criatividade comportamental brasileira. Já houve tempo em que as pessoas tinham muita vergonha quando se desconfiava delas e até podiam cometer gestos tresloucados (como o suicídio de um presidente da República) quando se lhes atribuía culpa pelo "mar de lama" à sua volta. Hoje em dia, não só ninguém assume (de graça) responsabilidade alguma pelos atos dos outros - mesmo que estes sejam seus notórios apadrinhados, agregados ou apaniguados -, como, ao contrário, jogam-se todas as culpas próprias nos ombros do próximo, especialmente se subordinado. É que se erradicou do território nacional a velha praga do "sentimento de culpa" (antes só interrompida nos dias de carnaval) que os velhos psicanalistas consideravam fonte de depressão e infelicidade.

Para muitos esse incômodo sentimento não passava de um obsoleto subproduto do maniqueísmo religioso - mas aí a questão é controversa, embora, de fato, o antigo medo do inferno tenha praticamente desaparecido. O que mais importa reter, no entanto, é a formidável descoberta da possibilidade de se terceirizarem as culpas, jogando para os outros todas as consequências negativas dos próprios atos. Rompeu-se aqui o clássico princípio ético-jurídico da individuação das responsabilidades, criando-se um sistema de liberação psíquica capaz de gerar conforto psicológico. É verdade que essa terceirização também resulta em quebra de valores morais, que tem por consequência a impunidade. Mas tudo na vida tem seu custo.

A terceirização das culpas se manifesta de várias formas na sociedade brasileira. Por exemplo, no campo da prestação dos serviços públicos, como os de eletricidade e telefonia, nas transações, como as bancárias, em tudo o que envolva a utilização de sinais de comunicação eletrônica ou diga respeito a procedimentos informatizados, ninguém mais tem culpa quando "cai o sistema". A culpa, pois, é sempre do "sistema", que ninguém sabe ao certo onde está, de onde vem e muito menos por que "caiu". O sinal de "banda larga", quando interrompido por dezenas de horas, causando incalculáveis prejuízos às pessoas que dele dependem (hoje crucialmente), propicia, no máximo, um afrontoso ressarcimento indenizatório de dois ou três reais (quando não de apenas alguns centavos).

Quando uma rede de lojas vende um produto eletrônico que deixa de funcionar no outro dia, ao infeliz freguês que o comprou - e tinha urgência em utilizá-lo - só resta tentar entender-se (geralmente em vão) com uma firma de "assistência técnica" de que jamais ouviu falar, de nada adiantando reclamar aos Procons da vida - embustes instituídos mais para desarmar do que para proteger os consumidores. É que a loja vendedora terceiriza a culpa pelos produtos estragados que vende, assim como inúmeros setores do comércio, da indústria e de serviços deixam de assumir a responsabilidade pelo que venderam, fabricaram ou prestaram, repassando-a a terceiros que não venderam, não fabricaram nem prestaram coisa alguma ao coitado do comprador.

É no espaço público-político, no entanto, que a terceirização das culpas se institucionalizou mais plenamente, em especial nos últimos tempos. Quando um chefe de Estado e governo afirma, com ênfase e convicção - dando até a incrível impressão de estar acreditando no que diz -, que não tinha conhecimento algum dos cambalachos, maracutaias e falcatruas, articulados e executados na antessala de seu próprio gabinete, há aí uma terceirização de culpa elevada a nível institucional. É bem verdade que na terceirização das culpas, especialmente em alto nível governamental, costuma ser escolhido a dedo, como absorvedor (de todas essas culpas), alguém de grande qualificação.

Na questão do mensalão, por exemplo, foi escolhido o ex-ministro mais forte, que se tornou o único cassado - além do denunciador -, como se só ele tivesse realizado todas as operações ilícitas visando à conquista da base parlamentar. Para pagar essa terceirização de culpa se ofereceu a ele a condição de intermediar grandes negócios com o governo, por meio da participação, em grande estilo, no jet set internacional. Quer dizer, uma cassação que se tornou altamente rentável. É até possível prever que terceirizações de culpa tão prósperas como essa estimulem a criação de uma nova profissão, a de culpado profissional particular - personal guilty -, contratado por gabinetes políticos com alta remuneração e o baixo risco correspondente ao grau de punibilidade vigente no País.

Quando o presidente de um dos Poderes da República afirma ignorar a existência de atos secretos assinados por um apadrinhado seu, durante longos anos, assim como o valor de depósitos de dinheiro irregular efetuados em sua própria conta corrente, e também os desvios de dinheiro público realizados por fundação com seu próprio nome, da qual é presidente vitalício e responsável financeiro estatutário, e que também ignora as nomeações (secretas), para a instituição que preside, de seus próprios parentes, assim como desconhece o tráfico de influência praticado nessa instituição por seus próprios descendentes, nesse caso as culpas foram terceirizadas para todo um Poder de Estado, tornando-o institucionalmente degradado - a ponto de ser ridicularizado (pizzaiolos) pelo próprio chefe de Estado que o degradou.

Em razão do lamaçal em que estão transformando nossos Poderes de Estado, talvez precisemos ressuscitar em nossa sociedade, com urgência, o obsoleto "sentimento de culpa".

Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor.

domingo, 23 de agosto de 2009

O espectro de Lula

O espectro de Lula
Hélio Schwartsman

Já acreditei que o presidente Lula e o PT trariam mudanças positivas para o Brasil; depois, no auge do "mensalão" tive raiva; hoje sinto pena de nosso solerte líder. É patético vê-lo advogar por figuras do quilate de José Sarney e Mahmoud Ahmadinejad, para ficar em dois casos recentes de defesa do indefensável.

Olhando apenas para os resultados, a gestão de Lula pode ser considerada bastante boa. Enquanto o mundo amarga uma recessão sem precedentes, a crise por estas bandas veio suave. As projeções sugerem uma ligeira retração este ano seguida de recuperação já em 2010. Mais importante, foi sob Lula que o Brasil experimentou um surto de crescimento como não víamos desde os anos 70. E não foi um crescimento qualquer, mas acompanhado de significativa distribuição de renda. Ao final de 2007, o presidente comemorava o fato de mais de 14 milhões de brasileiros terem saltado das classes D e E para a C (renda mensal familiar entre R$ 1.115 e R$ 4.807). Tais mudanças não passaram despercebidas aos brasileiros, que dão a Lula índices generosos de aprovação popular (69% segundo o último Datafolha).

É claro que as políticas do governo petista têm algo a ver com esses êxitos, mas não são as únicas responsáveis. O aumento da classe média, por exemplo, não é um fato isolado do Brasil, mas faz parte de um movimento mais geral também observado na China e na Índia e que pode ser explicado pelo forte crescimento da demanda global (em especial pelas commodities) até o ano passado.

Outro fator frequentemente esquecido é o chamado bônus demográfico. A redução das taxas de natalidade e de mortalidade combinada com a forte entrada das mulheres no mercado de trabalho tende a concentrar o número de pessoas economicamente ativas nas famílias. O resultado é mais renda que precisa ser distribuída por menos pessoas --nos últimos 40 anos, a fecundidade caiu de seis filhos por mulher para menos de dois. Fica o lembrete de que, dentro de mais algumas décadas, os efeitos positivos da mudança no perfil populacional se atenuarão e enfrentaremos o problema do excesso de aposentados para uma PEA (população economicamente ativa) declinante.

Longe de mim, entretanto, roubar os méritos da administração. Além de programas como o bolsa família e o forte aumento do salário mínimo (que, desde 2003, foi reajustado em 46% acima da inflação), o governo teve a sabedoria de não pôr tudo a perder. Sei que não é o tipo de elogio com o qual os petistas se regozijam, mas isso não o torna menos real ou importante. É só ver o que acontece na vizinha Argentina, onde o desenfreado populismo econômico do casal Kirchner está levando o país, senão à ruína, pelo menos a uma série de dificuldades que teriam sido desnecessárias com uma administração mais sóbria.

Diante desse esboço de avaliação do governo Lula (que está mais para positiva do que para negativa), o leitor deve estar se perguntando por que raios sinto pena do presidente. Ele, afinal, é aplaudido por sete de cada dez brasileiros, goza de forte prestígio internacional e tem reais chances de eleger Dilma Rousseff como sucessora. Se isso não é sucesso, fica até difícil imaginar o que possa sê-lo.

Bem, receio que haja, sim, outros aspectos a considerar. Vale lembrar o Fausto, personagem da literatura alemã que logrou acumular riquezas e até conquistar a imortalidade. Mas o fez ao preço de vender a alma para o Diabo. Lula também sacrificou uma parte importante de sua "anima politica" para chegar aonde está: não há mais traço de coerência em sua trajetória.

Aqui é preciso muito cuidado. O conceito de coerência, que já é insidioso para o homem comum, torna-se especialmente traiçoeiro quando aplicado a políticos, gente que converteu em ganha pão a arte de compor com o adversário. A pior definição possível de "coerência política" é aquela reduz o termo à repetição, ao longo de toda a vida, dos mesmos slogans e palavras de ordem. Felizmente, é apenas uma minoria dos seres humanos que recai nesse comportamento mal adaptado. Pobre do Brasil se o Lula eleito em 2002 tivesse colocado em prática as ideias que defendia em 1989.

É bom que as pessoas estejam aptas a aprender e modificar suas ideias, seja porque o mundo mudou seja porque o próprio sujeito já não é mais o mesmo. Evidentemente, não há nenhuma garantia de que as teses defendidas na maturidade são melhores do que as da juventude. Elas apenas tendem a ser mais moderadas. E, na maioria das vezes, a moderação é boa conselheira, mas este não é em absoluto um teste de veracidade.

Voltando à coerência, parece-me mais útil compreendê-la como uma linearidade nas atitudes morais. Se a pessoa julga que a igualdade de direitos, por exemplo, é um valor elevado a preservar, não pode esquecê-la em troca de uma vantagem pessoal ou política. Poderia, evidentemente, mudar de opinião acerca do próprio conceito, mas apenas como resultado de novas reflexões e ponderações, para cuja reelaboração tenha havido a intervenção de outros valores morais. Redefinir princípios ao sabor de circunstâncias mais terrenas leva o nome de "oportunismo".

E eu receio que Lula em particular e o PT em geral tenham sucumbido aos encantos do poder e sacrificado os valores morais por monetários (caso do "mensalão") e por jogadas de cálculo político.

Infelizmente, é o que Lula está fazendo quando defende José Sarney e minimiza as barbaridades cometidas no Senado Federal. Neste caso, um pouco para facilitar a vida congressual do governo, um pouco para justificar retrospectivamente os descalabros de sua própria administração, Lula deixa de prestar reverência aos princípios mais elementares da democracia, que afastam como absurda a possibilidade de reger a vida pública por atos secretos institucionalizados.

Alguns políticos, é verdade, já nascem sem espinha dorsal e sem intuições morais. Este, entretanto, não parecia ser o caso de Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha de 1989, Lula oferecia um diagnóstico bastante diverso de José Sarney, o então presidente da República: "Nós sabemos que antigamente --os mais jovens não conhecem--, mas antigamente se dizia que o Adhemar de Barros era ladrão, que o Maluf era ladrão. Pois bem, Adhemar de Barros e Maluf poderiam ser ladrão (sic), mas eles são trombadinhas perto do grande ladrão que é o governante da Nova República, perto dos assaltos que se faz''. Bem, Lula se aliou a Sarney e Maluf. Aparentemente, só não juntou forças com Adhemar porque ele está morto.

Há quem afirme que a política que se erige em absolutos converte-se em fanatismo --como o governo conduzido pelo incorrigível Mahmoud Ahmadinejad, outro dos "protegés" de Lula. Pode ser, mas eu pelo menos não falei em absoluto nenhum. O que afirmei é que a mudanças em atitudes morais podem ocorrer, mas precisam ser racionalmente justificáveis no plano dos conceitos. Lula precisaria explicar por que deixou de considerar importante a transparência no trato da coisa pública, por exemplo.
Quando o presidente e o PT se comportam exatamente como os Sarneys, Renans e Malufs, dão um tiro de misericórdia no respeito a princípios que um dia, já longe no passado, parecia ser o diferencial e talvez até a essência do Partido dos Trabalhadores. Lula tornou-se um espectro do que já foi. E é isso que me entristece.


Hélio Schwartsman, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

Uma interpretação racista da crise

Uma interpretação racista da crise
Marco Antonio Rocha
ESTADO DE S. PAULO - 30/03/2009

De modo que, agora, já se sabe. Essa crise que prejudica tanta gente no mundo inteiro foi provocada por banqueiros brancos de olhos azuis. Então, a solução parece simples: basta prendê-los todos e a crise estará debelada.

Mas, peraí... segundo a revista Time, entre os 25 banqueiros, dirigentes das instituições que maior responsabilidade tiveram pela crise, havia dois negros: o ex-presidente da Merrill Lynch Stan O`Neal e o ex-presidente Frank Raines, da Fannie Mae. Esta, a maior carregadora de créditos podres que o governo americano tem de resgatar.

Então, é preciso prender alguns banqueiros negros.

Mas nosso presidente foi além, diante de um perplexo Gordon Brown, primeiro-ministro da Inglaterra, e, respondendo à pergunta de um jornalista sobre se sua declaração não tinha "um viés ideológico", saiu-se com essa estrambótica justificativa: "Como não conheço nenhum banqueiro negro..."

Isso, realmente, é de pasmar. Lula foi mais de uma vez à África, e eu sei, por ter visto nas várias assembleias gerais do Fundo Monetário Internacional (FMI) que cobri para este jornal, que as delegações africanas são integradas, muitas delas quase que totalmente, por banqueiros negros - cobertos, aliás, por aqueles elegantíssimos e belíssimos trajes de seus países. Então, ou Lula é muito distraído, ou nunca conheceu, de fato, nenhum banqueiro africano na África, ou os banqueiros africanos nunca deram bola para suas visitas, não compareceram às cerimônias nem foram apresentados ao visitante.

Mas, o pior, nesse surto de disparates, num homem que projetou uma imagem internacional de grande sensatez, não só pela forma com que conduziu a economia brasileira no seu governo, como pela oratória que usa nos palcos internacionais ao apresentar propostas que, embora de difícil realização, ninguém pode deixar de ouvir com seriedade, é justamente o efeito sobre a boa imagem de Lula como dirigente sério.

Na próxima quinta-feira reúne-se em Londres o G-20, o grupo dos 20 países mais ricos do mundo, do qual o Brasil faz parte. A reunião é para tentar encontrar alguma fórmula viável de exorcizar a assombração financeira que tomou conta do planeta, que deixa os banqueiros brancos ou negros de cabelo em pé, as empresas sem crédito, os governos sem liquidez (alguns, do Leste Europeu, como a Rumânia, já estão morrendo de sede e já tiveram que recorrer ao FMI) e os governantes feito baratas tontas. Lula estará lá. É até um convidado especial. Recebeu carta do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e de Gordon Brown, exortando-o a comparecer e apresentar propostas. Por quê? Porque é importante ouvir um dirigente que tirou seu país das armadilhas da dívida externa sem comprometer o seu crescimento econômico.

O mundo rico está interessado em ouvir Lula. Não mais por causa da sua história pessoal de menino pobre que chegou à Presidência da República. Mas por causa da aura de bom senso que conquistou, de afabilidade, de bom articulador político, de jeitoso no encaminhamento de coisas sérias e difíceis. No entanto, depois dessa patacoada em Brasília, à qual a imprensa internacional deu grande destaque, com que espírito será recepcionado? Mas, então, pensarão alguns, esse homem de quem esperamos boas sugestões acha mesmo que a culpa da crise é de "banqueiros brancos de olhos azuis"? Simples assim?

Instado a comentar o que Lula declarara, Gordon Brown disse que "não culparia indivíduos, particularmente". E nada mais acrescentou.

Desajeitadamente, o presidente Lula pode ter prejudicado sua credibilidade e desmontado o palanque internacional que a reunião do G-20 lhe propicia - ele que parece querer postular a liderança da Internacional Socialista depois de entregar o governo. Sem falar que poderia ter ocorrido algo horrível. Ainda bem que o local era uma entrevista coletiva no Palácio do Planalto, onde os jornalistas costumam ser polidos. Fosse em outro país, onde jornalistas até atiram sapatos em presidentes quando não gostam do que ouvem, Lula poderia ser constrangido por perguntas muito mais desafiadoras e desagradáveis do que "o senhor não acha que sua declaração tem um preconceito ideológico?" E até por algum repórter malcriado saindo da sala aos gritos de que não tinha tempo para ouvir bobagens.Uma cena destas, nas TVs, derruba a imagem de qualquer dignatário.

O problema maior é que Lula, obcecado em promover a ministra Dilma, parece se descuidar.

Deixa de atender à sua proverbial sensatez e atende ao alvitre de quem não tem nem um átimo do seu tirocínio - um ministro da Fazenda que diariamente enche os jornais com declarações que viram tema de piadas no cafezinho das entidades de classe e nos meios financeiros; um ministro da Justiça que diariamente nos brinda com conceitos jurisprudenciais ofensivos à inteligência até dos rábulas do passado, quanto mais dos melhores juristas do presente; procuradores, promotores, delegados e juízes que se empenham mais em tentar purificar o capitalismo do que em prender e condenar assaltantes e assassinos de fato, e cuja inépcia processualística acaba por fazer dos presumíveis bandidos de colarinho branco - inocentados nos tribunais superiores - apenas vítimas de perseguição política.

Nesse processo de insidiosa infiltração da desgovernança num governo prestigioso, pode estar sendo irremediavelmente minada a possibilidade de Lula firmar-se como estadista no plano internacional e de assim colocar o Brasil numa posição realmente condizente com sua estatura econômica e social. Mas, se ele próprio se entrega a uma oratória meramente chistosa, boa para arengar as massas, mas inútil para impressionar dignatários, acabará confirmando o que seus muitos adversários acham: que está apenas deslumbrado consigo mesmo.

*Marco Antonio Rocha é jornalista.