domingo, 27 de janeiro de 2008

Karl Kautsky e a social-democracia clássica



KARL KAUTSKY
O teórico político marxista Karl Kautsky, nascido em 18 de outubro de 1854, foi uma das mais importantes figuras da história do marxismo, tendo editado o quarto volume de O Capital, de Karl Marx, as Teorias de Mais-Valia , que continha a avaliação crítica de Marx às teorias econômicas dos seus predecessores.

Kautsky estudou história e filosofía na Universidade de Viena, e se tornou membro do Partido Social Democrata em 1875. De 1885 a 1890, ele viveu em Londres, onde se tornou amigo de Friedrich Engels. Em 1891, foi co-autor do Programa de Erfurt do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), junto com August Bebel e Eduard Bernstein.

Após a morte de Friedrich Engels em 1895, Kautsky se tornou um dos mais importantes e influentes teoricos do socialismo mundial. Mais tarde, no entanto, foi empurrado para uma posição de "Centro" no interior da Social-Democracia alemã, quando Rosa Luxemburgo e a "esquerda" do partido se separaram em 1916, devido ao apoio do partido à participação da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. No entanto, diferentemente da "Direita" do seu partido, Kautsky não sustentou esta posição patriótica até o fim da guerra. Em 1917, mudou de opinião, deixando o SPD brevemente até 1922.

Kautsky foi um dos mais ferozes criticos do bolchevismo, condenando a ditadura totalitaria estabelecida por eles na Rússia. Em 1934, escreveu "Bolchevismo: Democracia e Ditadura", onde condenou a URSS e sua ditadura totalitaria. Vejamos como Kautsky concebia a ditadura do proletariado:

"Literalmente, a palavra ditadura significa supressão da democracia. Mas acontece que, tomada à letra, esta palavra significa igualmente poder pessoal de um só indivíduo que não está preso por nenhuma lei. Poder pessoal que difere do despotismo no fato de não ser entendido como uma instituição de Estado permanente, mas como uma medida extrema de transição.

A expressão "ditadura do proletariado", por conseqüência não de um só indivíduo, mas de uma única classe, prova que Marx não pensava aqui em ditadura no sentido literal da palavra.

Fala aqui não da forma de governo, mas do estado de coisas, que deve necessariamente produzir-se por toda a parte onde o proletariado conquistou o poder político."


Para Kautsky, a ditadura do proletariado defendida por Marx e Engels não deve ser entendida no sentido literal da palavra, ou seja, como supressão da democracia, mas sim como uma medida extrema de transição, onde o proletariado assume o poder e inicia o processo de construção do socialismo. Portanto ao contrário de Lênin, Kautsky não se opunha a democracia e compreendia corretamente o sentido marxista da ditadura do proletariado.

Quando Eduard Bernstein defendeu a revisão do marxismo, afirmando que a esquerda deveria se preocupar com as reformas que beneficiavam a vida dos trabalhadores, e não com a luta pelo socialismo, Kautsky se posicionou contra essa revisão. Apesar de defender o caminho reformista, Kautsky deixava claro que este só teria sentido em conexão com a luta pelo socialismo. Ele disse que:

"Quando Bernstein diz que devemos ter primeiramente a democracia para conduzir passo a passo o proletariado à vitória, eu digo que para nós a questão é inversa. A vitória da democracia está condicionada pela vitória do proletariado."


É importante questionar, o que Kautsky entende por democracia? Qual o seu conceito de democracia? Sim, lógico que é importante. Em um comentário sobre a experiência da Comuna de Paris, Kautsky enfatizou que "A primeira tarefa do novo regime revolucionário foi a consulta pelo sufrágio universal. A eleição, realizada com a maior liberdade, deu em todos os distritos de Paris e com raras exceções, grande maioria a favor da Comuna." Em outra passagem, se referindo a Revolução proletária, Kautsky evidenciou que: "Um regime que conta com o apoio das massas só empregará a força para defender a democracia, e não para aniquilá-la. Ele cometeria verdadeiro suicídio se quisesse destruir seu fundamento mais seguro: o sufrágio universal, fonte profunda de poderosa autoridade moral."

Fica claro portanto que para Kautsky, a vitória da Revolução Socialista, ou seja, a vitória do proletariado, é a vitória da democracia. Assim como Rosa Luxemburgo, Kautsky defendia que a ditadura do proletariado consistia na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. E que seria algo temporário, uma "medida extrema de transição."

Mas ao contrário de Rosa, Kautsky conhecia bem a conjuntura da Europa Ocidental e da Alemanha, não deixando-se levar pelo extremismo esquerdista. Kautsky foi dentro do marxismo, o pai do socialismo democrático, defendendo uma via pacífica para o socialismo, uma revolução processual fundamentada na radicalidade democrática. Faleceu em 17 de outubro de 1938, em Amsterdã, Holanda, onde encontrava-se exilado após os nazistas terem tomado o poder na Alemanha.

OBS: ao contrário dos eurocomunistas, que mesmo criticando o bolchevismo, são oriundos do mesmo, inclusive defenderam e ainda defendem a Revolução de Outubro, os social-democratas sempre se opuseram ao bolchevismo e não apoiaram a revolução realizada por eles na Rússia. Entretanto esses social-democratas eram marxistas e portanto anti-capitalistas, só que defendiam o socialismo com liberdade e democracia, e não um socialismo totalitario como o dos bolcheviques. Não eram traidores e nem renegados, inclusive foram os primeiros a fazer previsões que a história revelou serem válidas, sobre o fracasso do modelo bolchevique.

"Como o socialismo não consiste simplesmente na destruição do capitalismo e em sua substituição por uma organização estatal-burocrática da produção, a ditadura bolchevique estava destinada a fracassar e a terminar 'necessariamente no domínio de um Cromwell ou de um Napoleão'". (A previsão feita por Kautsky realiza-se plenamente na figura de Stálin).

(Israel Getzler: "Outubro de 1917: o debate marxista sobre a revolução na Rússia". In: História do Marxismo. Eric J. Hobsbawm (org.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, pp. 58-59)


Como defensor do socialismo democrático, busco inspiração não somente no chamado "eurocomunismo", mais também na social-democracia clássica. Essa social-democracia clássica, representada por Kautsky, é claramente socialista, fundamentando-se na filosofia marxista.

Leiam o texto abaixo e reflitam

GLOBALIZAÇÃO E ULTRA-IMPERIALISMO
Moniz Bandeira*


Apesar das diferenças qualitativas, devido às mutações quantitativas determinadas, ao longo da história, pelo progresso científico e tecnológico, o que se denominou de globalização da economia, nos anos 90 do século XX, começou, a rigor, com as viagens de circunavegação, muitas das quais foram financiadas, no final do século XV, por banqueiros florentinos, entre os quais Bartholomeu Marchioni, Girolamo Frescobaldi, Lucas Geraldi, Giovanni Battista Rovelasca Filippo Gualterotti, agente de Giovanni Francesco de Alfaiati (Flandres) e Girolamo Sernigi, o que financiara a expedição de Pedro Álvares Cabral à Índia [1], quando ela derivou para o ocidente e alcançou a costa do Brasil, em 1500. Banqueiros e mercadores alemães também participaram desses empreendimentos. Simon Seitz, Antonio Welser e Conrad Vöhlin, em 1503, receberam licença de Dom Manuel I, rei de Portugal, para estabelecer suas casas comerciais em Lisboa e promover seus negócios sob as mais liberais condições [2]. Os recursos financeiros da casa comercial da família Fugger, de Augsburg (Alemanha), que se tornara credora dos reis de Portugal e Espanha, contribuíram para as expedições de Cristóvão de Haro ao Rio da Prata, em 1514, e de Fray Garcia Jofre de Loaisa a Maluco (Molucas), em 1525 [3]. Esses banqueiros florentinos da classe mercantil, cujo núcleo, em Portugal, era fundamentalmente de extração judaica, ganhava então enormes fortunas e adquirira superioridade nos negócios, devido à rapidez com que fazia circular os fundos obtidos com as letras de câmbio e à capacidade de transferir com presteza, aproveitando a instalação, no século XVI, das ligações postais ordinárias, grandes créditos de Lisboa para Sevilha, Madrid, Antwerp, Flandres, Lyon, Gênova e Burgos.

Em meados do século XIX, o próprio Karl Marx, após salientar, no Manifest der Kommunistischen Partei, de 1848, que a burguesia desempenhara o mais alto papel revolucionário [4], na história, e criara maravilhas completamente diversas das Pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, observou que ela, através da exploração do mercado mundial, dera um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países e, com grande pesar para os reacionários, retirara da indústria sua base nacional [5]. Já àquele tempo, segundo acrescentou, as antigas indústrias eram ou seriam ainda diariamente destruídas, suplantadas por novas, cuja introdução se convertia questão vital para todas as nações civilizadas e que não mais empregavam matérias-primas domésticas, porém oriundas das mais longínquas regiões e cujos produtos se consumiam não só no próprio país, senão em todas as partes do mundo [6]. A arruinar as economias naturais e pré-capitalistas, o capitalismo vinculou todos os povos em um sistema de vasos comunicantes, tornando as sociedades interdependentes, apesar e/ou em conseqüência da diversidade de seus graus de progresso e civilização. E, desde o mercantilismo, sua evolução constituiu um processus de contínua globalização da economia, com a implantação do sistema colonial nas Américas, África e Ásia, a divisão internacional do trabalho e a criação do mercado mundial, paralelamente à conformação de Estados nacionais. Não foi por outra razão que Marx lançou o apelo: "Proletarier aller Länder, vereinigt euch!" [7]

A esperança de Marx e Engels, quando lançaram esse apelo, no Manifest der Kommunistischen Partei de 1848, consistia em que a transformação social ocorresse nos países industrializados da Europa, especialmente na Alemanha, já às vésperas de uma revolução burguesa, que, a realizar-se, segundo percebiam, sob as condições de maior progresso da civilização, naquele continente, e com um proletariado muito mais desenvolvido que o da Inglaterra, no século XVII, ou da França, no século XVIII, não poderia ser senão o prelúdio da revolução proletária. Essa perspectiva, que Marx vislumbrara, não se efetivou, sobretudo porque ele próprio concluíra e enunciara, no prefácio de Zur Kritik der Politschen Ökonomie, uma formação social nunca desmorona sem que as forças produtivas dentro dela estejam suficientemente desenvolvidas, e as novas relações de produção superiores jamais aparecem, antes que as condições materiais de sua existência sejam incubadas nas entranhas da própria sociedade antiga [8]. E não era essa a situação do capitalismo na Alemanha, onde a revolução de 1848 não conseguiu sequer unificar e forjar o Estado nacional, apesar de que o Zollverein (mercado comum), instituído em 1827, impulsionara sua industrialização, ao extinguir as aduanas internas que a dividiam em cerca de três dezenas de pequenos reinos. Coube a Otto von Bismarck, príncipe-regente da Prússia, fazê-lo, em 1870/71, cindindo a própria nacionalidade, com a exclusão da Áustria do Reich alemão [9], por meio de uma fronteira estatal.

Com efeito, em 1848, o capitalismo não esgotara suas possibilidades de desenvolvimento, nem na Alemanha, nem nos demais países industrializados da Europa, muito menos nos EUA, pois constituía o primeiro sistema econômico com capacidade de expandir-se mundialmente, e manter a continuidade do processo de acumulação, eliminando, progressivamente, todos os demais modos de produção, as formações pré-capitalistas, economias naturais e economias simples de mercado, das quais podia dispor como mercado para a colocação do seu excedente econômico, como fonte de meio de produção e reservatório de força-de-trabalho. E o progresso da indústria pesada, a descoberta da energia elétrica, a transmissão à distância, o navio a vapor e as estradas de ferro impulsionaram ainda mais a internacionalização ou globalização da economia, na segunda metade do século XIX. Essas conquistas tecnológicas não somente reduziram o tempo de circulação das mercadorias como também modificaram as formas e os métodos de guerra, favorecendo a monopolização da força armada pelos Estados nacionais, cujo avigoramento político e militar a expansão internacional do capitalismo exigia. E, a partir da crise econômica de 1873, que durou mais de 20 anos, o processo de concentração e centralização de capitais intensificou-se, sobretudo na indústria pesada, e os bancos passaram a desempenhar decisivo papel no fomento da produção, na medida em que forneciam às indústrias os recursos financeiros de que elas careciam. Novas formas de organização empresarial – trustes, cartéis, sindicatos de empresas e consórcios de bancos - constituíram-se, então, e trataram de estabelecer o monopólio ou a reserva de mercado, a fim de sustentar internamente os preços dos produtos, ao mesmo tempo em que se lançavam no comércio de exportação.

A monopolização dos mercados domésticos impeliu os grandes conglomerados (Konzern) a buscarem a monopolização dos mercados no exterior, reativando a expansão colonial, adormecida ao tempo em que o laissez-faire , ou seja, o liberalismo de Manchester, predominou na economia. O capitalismo, que antes se opunha ao Estado, passou a utilizá-lo, para a sua expansão, demandando a superação das formas débeis de Estado, geradas na época da economia natural e da economia simples de mercado, i. e., a reorganização das superestruturas políticas, mediante o robustecimento de um poder central, com a formação de um Estado unitário, que servisse como alavanca de expansão dos mercados e assegurasse a continuidade do processo de acumulação. A indústria pesada – não mais a têxtil – adquiriu importância cada vez maior na economia, na medida em que a corrida armamentista se intensificou, na luta pelos mercados e fontes de matérias primas. Destarte, ao mesmo tempo em que assumia o caráter financeiro e gerava modelos monopolísticos de organização empresarial, o capitalismo necessitou de estados poderosos, para garantir o mercado nacional, mediante proteção, e servir para a abertura dos mercados exteriores, bem como transformar todas as regiões do mundo em zonas de investimento. O poder político e militar dos Estados tornou-se elemento decisivo na concorrência econômica, que já não mais se limitou ao mercado para a colocação de manufaturas, nos quais apenas se decidia o preço. Ela se estendeu ao mercado de capitais, com a oferta de empréstimos, condicionados à posterior absorção de produtos industriais, não mais somente de tecidos e/ou bens não-duráveis de consumo, mas de equipamento ferroviário, canhões e outros petrechos bélicos, necessários à formação de um moderno aparelho de Estado. Essas exportações de bens de capital contribuíram para o surgimento da indústria de bens de consumo, nos países mais atrasados. E as estradas de ferro e os armamentos, facilitados pelos empréstimos externos, tanto constituíram a argamassa com que os Estados-nações sedimentaram a sua unidade quanto, contraditoriamente, assinalaram uma nova etapa na internacionalização da economia. O militarismo tornou-se um meio de primordial importância para a realização do excedente econômico ( Mehrwerts). E possibilitou o advento do imperialismo, que Rosa Luxemburg definiu o como a expressão política desse processo de acumulação do capital [10], em sua luta para conquistar as regiões não-capitalistas, ainda não dominadas e integradas no sistema capitalista mundial [11]. A teoria de Marx sobre o colapso do capitalismo falhou, foi irrtümlich (errônea), conforme ela demonstrou, em "Die Akkumulation des Kapitals", obra publicada em 1913, porque ele fizera sua análise em uma época na qual o imperialismo ainda não havia aparecido no cenário mundial [12]. E o que impulsionou o imperialismo, partir da segunda metade do século XIX, foi o rápido desenvolvimento da indústria, em todos os países civilizados ( Kulturländern), sobretudo na América do Norte e na Alemanha, que acirrou a concorrência no mercado mundial. Conforme Friedrich Engels assinalou em notas inseridas no terceiro tomo de "Das Kapital" [13].

A América do Norte, ou seja, os EUA, considerada por Marx o país mais avançado (das vorgeschrittenste Land) [14], sem o qual, se fosse riscado do mapa, haveria a anarquia, a completa decadência do comércio e da moderna civilização [15], saltou do quinto lugar, que em 1840 ocupava no ranking das potências industriais, para o quarto, em 1860, para o segundo, em 1870, e para o primeiro, em 1895 [16], quando já estava a produzir mais aço e carvão do que a Grã-Bretanha e a Alemanha juntas [17]. A fabricação em série, ao reduzir custos de produção, permitiu que, em alguns decênios, os EUA se tornassem uma potência econômica, antes mesmo de constituírem uma potência política e militar, e conquistassem a supremacia no mercado mundial, além de dispor de enorme espaço econômico, suficiente, inclusive para a era do imperialismo, cujo campo de expansão já estava, ademais, geograficamente determinado, com o movimento pan-americano [18], que principiava sob a cobertura da Doutrina Monroe [19]. Essa doutrina, expressão de uma política unilateral dos EUA, o presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) rejuvenesceu com um Corolário, autorizando intervenção em outros Estados latino-americanos, executada com agressiva determinação na América Central e no Caribe, de modo a proteger a segurança do canal do Panamá e consolidar no continente o imperium informal dos EUA. A convicção expressada por ele e outros líderes norte-americanos era de que a segurança dos EUA estava a depender de efetiva hegemonia sobre seu próprio hemisfério [20]. Entretanto, no início do século XX, a hegemonia dos EUA não mais se limitava ao hemisfério, onde eram, praticamente, soberanos e seu fiat tinha força de lei [21], conforme o secretário de Estado, Richard Olney, proclamara em 1895. Ela se estendia, das Índias Ocidentais, no Caribe, até Tutuila, no arquipélago de Samoa e Guam, ao sul do Pacífico, quinze milhas a leste das Filipinas, colônias que conquistara à Espanha, em 1898, ao derrotá-la na esplendid little war pela independência de Cuba [22]. Com a segunda maior força naval do mundo, antes mesmo de concluída a abertura do Canal do Panamá (1914), dominando os dois oceanos – o Atlântico e o Pacífico – os EUA, sob a presidência de Theodor Roosevelt, consolidaram a sua posição como potência mundial e o social darwinismo constituiu a rationale de sua política de expansão imperial, interpretada como o avanço da civilização e contra a selvageria [23].

Por sua vez, a Alemanha, desde sua unificação em 1871, entrara igualmente em uma etapa superior de industrialização, impulsionada pela conquista da Alsácia e da Lorena, com suas ricas jazidas de minério de ferro, e os cinco bilhões de francos-ouro, que a França, após a derrota na batalha de Sedan (1870) pagou como indenização de guerra. Em 1874, sua rede ferroviária (mais de 20 000 km) estava praticamente concluída, o volume de seu comércio, no mercado mundial, era apenas inferior ao da Grã Bretanha. Cerca de 25 anos depois, em 1900, a Alemanha, cuja população saltou de 41,6 milhões de pessoas, em 1873, para 52 milhões, em 1895, e 67 milhões, em 1913 [24], tornar-se-ia a segunda potência industrial do mundo, suplantada apenas pelos EUA. Entre 1907 e 1913, em apenas seis anos, sua produção de carvão aumentou de 1/3, subindo de 143 para 191 milhões de toneladas, e a produção de aço cresceu cerca de 50%, ao saltar de 13 para 19,3 milhões de toneladas [25]. Também as indústrias de material elétrico, representadas pela Siemens e AEG, assim como as indústrias de produtos químicos (BASF, Bayer e Hoechst) e de motores alcançaram, no mesmo período, extraordinárias taxas de crescimento. E o volume do comércio exterior da Alemanha elevou-se de 15,6 bilhões de marcos, em 1907, para 20,9 bilhões, em 1913 [26]. A situação na Europa, entretanto, era diversa da existente na América. As diferentes condições naturais, que dentro do amplo espaço econômico dos EUA lhes favoreceram o rápido desenvolvimento, estavam na Europa repartidas de maneira casual e irracional entre uma grande quantidade de pequenos países e este fator compeliu as potências industriais, como Grã-Bretanha e França, à ampliação de seus impérios coloniais, com a conquista de territórios na Ásia e na África. Também estados menores, a exemplo da Bélgica e da Holanda, possuíam consideráveis possessões em outros continentes. Porém, a contrastar com seus principais competidores, a Grã-Bretanha e, sobretudo, os EUA, para os quais todo o continente americano tinha o caráter de colônia, a Alemanha não possuía qualquer domínio importante, um novo território, com grandes áreas de economia não-capitalista, ao qual pudesse estender o círculo de consumo para o capital, possibilitando-lhe o incremento da reprodução, i. e., a continuidade da acumulação. A fim de evitar conflito com a Grã-Bretanha, e a França, Bismarck opusera-se à idéia de um Império Central Africano ( Mittelafrika), proposta, em 1882, por Carl Peters, dirigente da Gesellschaft für deutsche Kolonisation [27], e rechaçara energicamente a sugestão de encorajar a formação de um estado alemão independente, no sul do Brasil, quando a república foi proclamada em 1889, por não querer um enfrentamento com os EUA [28]. Apenas se assenhoreou, em 1884, de Togo e Camarões, na costa ocidental da África, e de Tanganica, ao lado do Oceano Índico, em 1895 [29]. Assim, a contradição entre a relativa estreiteza do seu espaço econômico e a extraordinária expansão do capitalismo devia impulsionar a Alemanha, em meio de tensões sociais e políticas domésticas, a uma solução violenta, como Rudolf Hilferding previu [30].

Kautsky e a teoria do ultra-imperialismo

De fato, a Alemanha, onde a Krupp possuía extraordinário excedente de material bélico e manobrava para provocar o conflito [31], tratou de ampliar pela força seu espaço econômico. Vitoriosa nas guerras de 1870, ela cria na superioridade do seu povo e na invencibilidade dos seus soldados. E o conflito armado irrompeu, em 28 de julho, quando a Áustria declarou guerra a Sérvia. A Alemanha, logo em seguida, declarou guerra à Rússia (1° de agosto) e à França (3 de agosto), bem como invadiu a Bélgica (4 de agosto). A Grã-Bretanha, que estabelecera com a França e a Rússia uma Entente Cordiale, não tardou em declarar guerra à Alemanha (4 de agosto) e, assim, a conflagração espraiou-se por toda a Europa, envolvendo virtualmente cerca de 57 estados, nos quatro continentes. Um mês depois, em "Die Neue Zeit" de 11 de setembro de 1914, Karl Kautsky, o mais importante teórico da II Internacional ou Internacional Socialista, discípulo direto de Marx e Engels, publicou um artigo, intitulado "Der Imperialismus" , no qual salientou que se podia aplicar ao imperialismo o mesmo que Karl Marx dissera sobre o capitalismo, i. e., que o monopólio gerava a concorrência e a concorrência gerava o monopólio [32], ponderando que, da mesma forma que a furiosa competição das firmas gigantes, dos bancos gigantes e multimilionários, que absorviam os menores, levaram os grupos financeiros a conceber a idéia do cartel, a guerra mundial poderia compelir as potências imperialistas a formar uma união e pôr fim à concorrência na produção de armamentos [33]. Segundo sua opinião, não era impossível, do ponto de vista puramente econômico, que o capitalismo entrasse em nova fase, marcada pela transferência dos métodos dos cartéis, para a política internacional, a fase do ultra-imperialismo, que também devia ser, energicamente, combatido e cujo perigo jazia em outra direção e não na corrida armamentista e na ameaça à paz [34].

A livre concorrência, na economia capitalista, equivalia à lei da selva, i. e., o princípio da seleção das espécies através da lei do mais forte. A guerra da concorrência era conduzida por meio da redução dos preços, o que dependia da produtividade do trabalho, e este da escala da produção, de modo que vencia a empresa que possuísse mais recursos tecnológicos, mais capital, e/ou outras vantagens [35]. "Die größeren Kapitale schlagen daher die kleineren" ("os grandes capitais derrotam os pequenos") – disse Marx, explicando que a concorrência se acirrava em relação direta com o número e em relação inversa à grandeza dos capitais, que se rivalizavam, e terminava sempre com a derrota dos pequenos capitalistas, cujas empresas, ou iam a pique, ou passavam para as mãos dos vencedores [36]. O mercado, no qual os capitalistas faziam a conversão monetária do excedente econômico, era o campo de batalha, a selva, onde somente os mais aptos, os mais fortes, podiam sobreviver. Por essa razão, em 1862, Marx escreveu a Engels que se deleitava com o fato de Charles Darwin reconhecer, entre as plantas e os animais, a própria sociedade inglesa, com a sua divisão do trabalho, competição, abertura de novos mercados, invenções e a luta pela existência, conforme a teoria de Thomas Robert Malthus [37] sobre o crescimento populacional. Era o "bellum ominium contra omnes" [38], de Thomas Hobbes, que lhe fazia lembrar a Phänomenologie [39], de Hegel, na qual a sociedade burguesa se apresentava como o geistiges Tierreich (espírito do reino animal), enquanto na teoria de Darwin o reino animal figurava como a sociedade burguesa [40]. Contudo, da mesma forma que a concorrência entre as firmas, possibilitando a concentração e a centralização do capital, havia gerado, a partir de 1870, os monopólios e novas formas de organização empresarial, como os trustes e sindicatos, tendências para a cooperação já se afiguravam nas potências imperiais, com a formação de estruturas cartelizadas e o potencial controle das crises internas, tal como Rudolf Hilferding observara [41], ao demonstrar que o progresso do capitalismo tornava cada vez mais intensa a interdependência internacional dos processos econômicos, razão pela qual os fenômenos de um país, com todas as suas particularidades do seu estágio de desenvolvimento temporal, técnico e organizatório, influenciavam também a crise de outros países [42]. Essa percepção levou Kautsky a aventar a possibilidade de que as grandes potências também estendessem e aprofundassem sua cooperação, em parte como resposta à ameaça da revolução ou dos movimentos de libertação nacional, nos países coloniais. E em artigo publicado em Neue Zeit, em 30 abril de 1915, sob o título "Zwei Schriften zum Umlernen" [43], explicou:

O movimento para revogar a proteção aduaneira na Grã-Bretanha, o rebaixamento das tarifas na América, a tendência para o desarmamento, o rápido declínio nas exportações de capital da França e da Alemanha, nos anos anteriores à guerra, e, por fim, o crescente entrelaçamento entre as várias cliques do capital financeiro levam-me a considerar se não é possível que a atual política imperialista seja superada por uma nova política ultra-imperialista, que, no lugar da luta entre os capitais financeiros nacionais, estabeleça a exploração conjunta do mundo pelo capital financeiro internacional. Essa nova fase do capital financeiro é, em todo caso, concebível [44].

Kautsky especulou com prováveis conseqüências que a guerra mundial, em curso, produziria, sobre a evolução do capitalismo, e admitiu, inclusive, a possibilidade de que o imperialismo evoluísse para uma fase, que ele denominou de ultra-imperialismo, embora reconhecesse a ausência premissas suficientes para afirmar que ela se realizaria. E sua avaliação era consistente com a análise do processo de concentração e centralização capital, feita por Marx, pois a guerra mundial, deflagrada em 1914, desdobrava por meios militares a concorrência econômica e comercial entre as potências industriais da Europa. Vladimir I. Lenin, em sua famosa obra "O Imperialismo, fase superior do capitalismo" [45], rechaçou, porém, a hipótese de que o imperialismo evoluísse para o ultra-imperialismo, dizendo que as abstrações mortas e as divagações inconsistentes de Kautsky estimulavam, entre outras coisas, a idéia profundamente errônea e que levava água para o moinho dos apologistas do imperialismo, segundo a qual a dominação do capital financeiro atenua a desigualdade e as contradições da economia mundial, quando, em realidade, o que faz é acentuá-las [46]. Sua percepção era a de que o imperialismo configurava o capitalismo em decomposição, o capitalismo de transição ou, mais propriamente, agonizante [47], que conduzia à plena socialização da produção, em seus mais variados aspectos, e arrastava os capitalistas, apesar de sua vontade e consciência, a um certo novo regime social, de transição entre a plena liberdade de concorrência e a socialização completa [48]. O imperialismo é prelúdio da revolução social do proletariado – Lenin pontificou, aduzindo que esse seu entendimento fora confirmado, em escala mundial, desde 1917 [49], ao contrário de Kautsky, que não considerou o imperialismo como a fase final do capitalismo, da qual a revolução socialista resultaria, em um prazo histórico relativamente curto, e admitiu outras hipóteses sobre o seu desenvolvimento.

A atitude de Lenin, acusando Kautsky de romper irremediável e decididamente com o marxismo [50] etc., não decorreu de uma reflexão teórica, com base científica, mas de uma paixão política. O objetivo das diatribes, com que ele contribuiu para dogmatizar o marxismo, não consistiu em convencer, mas em vencer, em estigmatizar os que pensavam diferentemente, pois todo o seu esforço visava, antes de mais nada, a promover a revolução na Rússia e no resto da Europa. O próprio Kautsky reconheceu que Lenin fora um homem dos mais persistentes, inabaláveis, com uma vontade desafiante, e comparou-o a Bismarck [51], inclusive por compreender muito bem o significado da força armada, na política, e aplicá-la, implacavelmente, no momento decisivo. Ponderou, porém, que, ao contrário de Bismarck, que estudava cuidadosamente os Estados, com os quais tinha de ligar seu poder e as relações de classe neles existentes, Lenin nunca conseguiu entender completamente as peculiaridades sociais e políticas da Europa Ocidental, embora lá houvesse vivido, como emigrante, várias décadas. Sua política, adaptada completamente às peculiaridades da Rússia, foi, com respeito aos países estrangeiros, baseada na expectativa da revolução mundial, a qual, desde o começo, devia ter parecido uma ilusão para qualquer um que conhecesse a Europa Ocidental, Kautsky aduziu [52]. Com efeito, a política de Lênin, sua concepção de partido e seu comportamento político, marcado pelo voluntarismo, refletiram as idiossincrasias culturais da Rússia, onde em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro pelo calendário gregoriano [53]) a revolução finalmente irrompeu, possibilitando o ressurgimento do Soviet de Deputados Operários e Soldados e compelindo o Tsar Nicholas II a abdicar do trono.

A revolução socialista não se estendeu a toda à Europa. E a história, que se desdobrou com a Segunda Guerra Mundial e, por fim, o desmoronamento da URSS demonstrou que a hipótese de Kautsky estava mais correta e mais próxima da realidade do que a expectativa de Lênin. As grandes potências formaram um grande cartel, o G7 (o grupo das sete nações mais industrializadas), para ajustar os problemas econômicos, e têm na OTAN seu instrumento bélico. E o ultra-imperialismo configurou-se com a supremacia dos EUA, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas, sobretudo, após o colapso do Bloco Soviético, que abriu novos mercados, concorrendo para impulsionar o processo de internacionalização ou globalização da economia capitalista. As contradições de interesses entre as potências industriais, decerto, não desapareceram completamente, porém nada autoriza a supor que elas, entre si, possam chegar a um conflito armado. As guerras passaram a ser com os países que se encontram na periferia do sistema.


*Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político e professor emérito de política exterior da Universidade de Brasília.

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