domingo, 27 de janeiro de 2008

O senhor Mercado

Selvino Heck*

O senhor Mercado está à solta nos últimos dias. Abre-se o jornal, liga-se a televisão, ouvem-se os comentários econômicos e lá está ele. "Hoje o mercado acordou sobressaltado"; "o mercado teve soluços", "o FED americano deu um forte calmante para o senhor mercado"; hoje o mercado acordou de bom humor". Segundo os analistas, não se sabe bem porque o mercado está nervoso, em sobressaltos, se é porque a economia americana caminha para a recessão, se a China está crescendo demais, se o petróleo aumentou de preço. A verdade é que o Mercado está descontrolado, oscilando, dando pulos a cada dia, e os bancos centrais buscando remédios e injetando bilhões para acalmá-lo..

O mercado parece gente. Parece alguém de nós em grave crise na vida, porque perdeu um amor, porque morreu alguém, porque não passou no vestibular, ou por uma noite mal dormida. Fica-se nervoso, a cabeça dói, tem-se dificuldade de concentração, o coração ameaça disparar, o desconforto é geral.

Não é mais o capitalismo industrial que controla o mundo e domina a economia. Não é mais a produção de alimentos, de peças de carro, de utensílios residenciais ou de trabalho quem determina o dia a dia das pessoas, seu emprego ou desemprego, seu salário maior ou menor, seus ganhos, sua rentabilidade. O capitalismo financeiro determina os fluxos de dinheiro, os lucros obtidos, os problemas econômicos, as crises dos países. O mercado decide, determina. É a globalização financeira.

E é taxa de juros pra cá e pra lá, a tal Taxa Selic e tantas outras, rendimentos de capital, subida ou descida das bolsas de valores, taxa de câmbio. Um recuo ou avanço na base dos centésimos nos números do mercado pode ser um sinal, um arrancar de cabelos ou uma gargalhada para milhões ao redor do mundo. Tudo porque a Bolsa de Tóquio abriu em queda ou em alta, a de Hong Kong também, no que é seguido pelas Bolsas européias, a Bolsa Brasileira, como toda emergente, vai atrás, até que abre, finalmente, a Bolsa americana, referencial de todos (ou já nem o é mais, ou aos poucos não está sendo mais, porque o império americano, segundo muitos, está em crise, embora ainda vá levar décadas até ruir, como todo império).

Mas, ao que parece, o senhor Mercado veio para ficar. Instalou-se solenemente na praça e vende seus produtos. Quem tem um dinheirinho sobrando, cem, duzentos reais, vai lá e aplica em ações da Bolsa. E começa a acompanhar as notícias do dia. Caiu, subiu? Ganhou, perdeu? Quais as ações com maior liquidez? E a dor de cabeça aumentando porque o infeliz, em vez de trabalhar e ganhar o seu salário honestamente, resolveu investir no mercado de ações sem entender nada, achando que as burras estariam cheias no dia, no mês ou no ano seguinte. E eis que, de repente, uma tal de ‘subprime’ americana resolve entrar na roda e deixar tudo em suspenso e o mundo a perigo. Sim, o mundo a perigo! Vai que os juros voltam a aumentar no Brasil. Vai que a economia americana resolve desandar de vez. Vai que a China decide frear o crescimento à espera de dias melhores. Vai que o preço das ‘commodities’ (o mercado e a ciranda financeira nos ensinam todos os dias palavras novas, em inglês).

O senhor Mercado não perdoa. Ele é cruel, impiedoso. Pior que não se enxerga seu rosto nunca, ele é impessoal, não se sabe bem quem maneja suas intenções, se tem alguém que decide por ele. O que é certo é que não perdoa. O dinheiro que existia hoje amanhã pode simplesmente sumir, evaporar. Não é que nem a enxada, a roda da bicicleta, o tijolo, o paletó ou mesmo o livro. Esses são visíveis, sabe-se de onde vieram, onde foram ou podem ser aplicados; quem os comprou, quem os vendeu, o bom ou mau uso feito deles. Podem mesmo ser passados adiante, reutilizados, até porque duram tempo. Não são etéreos, insondáveis, desconhecidos de nome e sobrenome.

O senhor Mercado mata muita gente. Como poucos têm acesso a seus papéis, títulos e à sua convivência, acaba que os milhões e bilhões de reais, de dólares, de libras, de euros, de pesos terminam em meia dúzia de mãos e bolsos. Ou melhor, computadores, porque neles circulam os números. O senhor Mercado não lida com moedas ou cédulas que dá pra ver e tocar. Os demais, os que estão fora do mercado, que sobrevivam com as migalhas do que sobra dos banquetes dos que estão em Davos e decidem os destinos do mundo.

É preciso descobrir o senhor Mercado, sua residência, seu aparato, conhecer seu funcionamento e suas armas, e destruí-lo (ou alguém pensa que dá para reformá-lo?), antes que se torne tão forte e onipresente que seja impossível saber onde está, o que faz, como controla as mentes e corações. Para que se possa voltar a viver no mundo das coisas tangíveis, perecíveis e não mais no silêncio dos puros números e abstrações.

Há uma chance quando a crise se apresenta ameaçadora, como agora. Talvez hora de juntar outros e outras, reunir milhares, milhões, (re)começar ou continuar a organização, a luta e a resistência. E retomar os ideais de 1968, a rebeldia de 68, a construção da igualdade, o sonho de justiça, os valores da partilha e da solidariedade.


*Selvino Heck: Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política

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