quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A ética e o sentido da vida

*Patrus Ananias

Vivemos uma crise ética que pode por em risco o projeto de humanidade, caso seja levada às últimas conseqüências. No Brasil, há um passivo histórico elevado nesse campo, advindo das dívidas sociais acumuladas e também da relação predatória com o meio ambiente e com nossas riquezas. O que aprofunda e evidencia essa crise encontra-se no caldo de cultura fragmentada, dispersa e sem referência que se propaga na sociedade contemporânea, sob o nome de pós-modernidade. Há os que não aceitam o termo, por acreditarem que encerra em si a compreensão errônea de conclusão dos projetos da modernidade. A psicanalista Maria Rita Kehl, por exemplo, refere-se a essa nossa era como uma modernidade tardia.

O fato é que vivemos um momento tenso, marcado pelo individualismo exacerbado, com perigosas quebras de valores coletivos, comunitários e solidários. Se num primeiro momento, e a partir de determinada perspectiva histórica, o rompimento com sistemas e autoridades teve um viés nitidamente libertário, a apropriação dessa prática pelo pensamento neoliberal o escamoteia, conferindo-lhe caráter mais retrógrado do que propriamente progressista.

O resultado mais latente desse processo é a relativização excessiva defendida por muitos estudiosos atrelados à pós-modernidade, que apregoam o fim da História e das ideologias. Com isso, perdemos nossa referência de humanidade. Não defendo o retorno a uma verdade única e absoluta. Mesmo porque, se analisarmos o que esconde por trás da falsa liberdade propagandeada pelo pensamento neoliberal fragmentado, veremos que é justamente um discurso totalizante, massificador e sem respeito às pluralidades, às diferenças e que justifica, ainda que de maneira dissimulada, o preconceito. Um discurso que reduz a uma dimensão meramente pessoal e dissociada da dos valores comunitários o conceito das liberdades individuais, sobretudo da propriedade, do dinheiro e do lucro. E, se é fato que não haja uma verdade absoluta, também é fato que não podemos abrir mão de buscar a compreensão da totalidade dos fenômenos sociais, humanos, econômicos e culturais. Não podemos separar os meios dos fins, assim como não podemos separar corpo e mente, ciência e ética. É dessa unidade que necessitamos.

O que se desprende da concepção fragmentadora de mundo chega ao nosso cotidiano comprometendo as relações humanas de maneira dramática. Quando se interrompe a comunicação, o olhar, a escuta e o respeito pelo outro, emerge a violência, que tem na desigualdade social uma de suas mais contundentes expressões, deixando exposta a quebra de valores éticos de convivência e o comprometimento da própria unidade da espécie humana.

A concentração excessiva de riqueza, além de atingir os mais pobres, também tem efeitos danosos sobre os filhos das classes sociais mais abastadas por meio da ameaça do vazio existencial. A desigualdade, ela própria, se apresenta violenta, corrompendo os princípios elementares da dignidade humana, negando em muitos casos acesso à direitos essenciais como alimentação, moradia, educação de qualidade, saúde, trabalho. Para além da dimensão ética e humana, contrária à lógica da acumulação excessiva, há ainda a disseminação do consumismo irresponsável, numa sociedade que apela ao consumo, oferta uma série de oportunidades de bens materiais, mas restringe seu acesso porque não oferece as mesmas oportunidades a todos.

A sociedade confina-se em seus sofrimentos particulares e isso pouco ajuda no processo de mobilização social

Da condição de desigualdade temos um dos principais fatores que põe em andamento um círculo vicioso de produção de outras violências que deixam pessoas, famílias e até comunidades inteiras ameaçadas pelo crime organizado. E isso atinge a sociedade como um todo, em toda estratificação social, ainda que de maneiras e intensidades distintas, porque as diferenças sociais se refletem também nesse campo.

Em outra ponta, a sociedade confina-se em seus sofrimentos particulares e isso pouco ajuda no processo de mobilização social que, felizmente e para nossa esperança, persiste. Mesmo que ainda careça de mais espaços de diálogo e interação, como bem defende Boaventura de Sousa Santos no que chama de teoria da tradução, são experiências, em esferas governamentais e não-governamentais, que tentam, em suas especificidades e demandas, reconstruir um espaço público, refazer o pacto social. Encontram-se aí, por exemplo, os projetos de economia solidária, das práticas de democracia participativa; os movimentos dos catadores de material reciclável, dos ambientalistas, dos trabalhadores sem-terra, da agricultura familiar e dos movimentos de democratização dos espaços urbanos, dentre tantos.

Muitos nos cobram a responsabilidade do Estado diante da situação. O mesmo Estado que foi fragilizado pelo modelo neoliberal. Digo que é legítima a cobrança, incluindo aí a responsabilidade disseminada entre todos os entes federados. No entanto, a mesma legitimidade deve nos levar também a questionar, com apuro, a responsabilidade de outros atores, a começar por nós mesmos, passando pelas muitas instituições: igrejas, escolas, empresas, associações, entidades representativas, mídia. Mas sem nunca esquecer da responsabilidade individual de cada um, pois já dizia Mahatma Gandhi: "façamos em nós as mudanças que cobramos dos outros".

A questão da sobrevivência do projeto humano nos põe questões graves, dentre os quais, o dever de impor limites éticos à propriedade, ao lucro e ao consumo em nome de uma vida social equilibrada e marcada por valores civilizatórios e emancipadores. Temos o compromisso com as gerações futuras de reconstruir e fazer valer o espaço coletivo cidadão. Estabelecer parâmetros humanos, solidários, medidas de defesa da vida como mediadores de nossas relações pessoais, sociais, culturais e econômicas.

Isso implica em reavaliar valores, restabelecer referências, mas também nos conduz a defender uma sociedade com mais justiça social. Que ela seja menos permeada pelo poder do dinheiro e mais pautada pelo direito da fruição da vida em todas as suas possibilidades, seguindo os mais avançados parâmetros iluministas de nossa ainda recalcitrante, mesmo que tardia, modernidade.


*Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Publicado: Valor Econômico - SP 02/01/2008

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