sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Sujeito vira objeto; objeto, sujeito

Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
 
 
O consumismo neoliberal gera, hoje, uma proeza que deixa os filósofos mais encucados: o sujeito humano passa à condição de objeto e o objeto –a mercadoria– ocupa a condição de sujeito.

O consumo já não é determinado pela necessidade. Depende, sobretudo, do sonho do consumidor de alcançar o status do produto. Isso mesmo: a mercadoria possui grife, status, agrega valor a quem a porta. Ao obtê-la, o consumidor se deixa possuir por ela. O valor que ela contém, criado pela mídia publicitária e pela moda, emana e impregna o consumidor.

No universo consumista, se alguém deseja ser bem aceito entre seus pares, no círculo social que frequenta, precisa equipar-se com todos aqueles objetos de luxo que o revestem de uma auréola capaz de sinalizar socialmente o alto nível de seu status. Ai dele se não ostentar certas marcas de carro, relógio e roupa. Ai dele se não frequentar restaurantes seletos. Ai dele se não viajar em classe executiva para Nova York, Paris ou uma ilha do Pacifico apontada como o novo point.

Caso o sujeito se recuse a ostentar a lista de objetos considerados requintados, ele corre o risco de ser excluído, deletado do círculo social que estabelece como código de identificação certo nível mínimo de padrão de consumo.

Em suma, o sujeito passa a ser tratado como objeto. Duplo objeto: por se sujeitar à mercadoria e por ser rechaçado por seus pares. Porque no sistema consumista só é aceito quem transita despudoradamente no universo do luxo e do supérfluo.

Esse processo de desumanização estimula a obsolescência das mercadorias. Agora se produz para atender, não a uma necessidade, mas a um sonho, um desejo, um anseio de alpinismo social. O produto adquirido hoje –carro, computador, ipad– estará obsoleto amanhã.

Você pode até insistir em conservar o mesmo equipamento eletrônico, suficiente às suas necessidades atuais. Todos à sua volta constatarão o seu anacronismo. Você perdeu a identidade da tribo, que avança para a aquisição de mercadorias ainda mais sofisticadas, com design mais arrojado.

O único modo de ser aceito na tribo é se revestindo dos mesmos objetos que, atuando como sujeitos, o resgatam do cinzento e medíocre universo do comum dos mortais.

Essa inversão do sujeito humano tornado objeto e do objeto transformado em "humano” ou mesmo "divino”. Isso se dissemina através da publicidade – que não faz distinção de classes. O apelo é igual para todos. Tanto o biliardário em seu jato executivo quanto o jovem da favela semianalfabeto sofrem o mesmo impacto publicitário.

A diferença é que o primeiro tem fácil acesso aos novos ícones do consumismo. O jovem absorve os ícones em seu embornal de desejos e reconhece o quanto ele é socialmente descartado e descartável por não se revestir de objetos que imprimem valor às pessoas. Daí a frustração e a revolta.

A frustração pode ser compensada pela sadia inveja dos espectadores de brilho alheio: leitores de revistas de celebridades e internautas que navegam atraídos pelo canto da sereia de seus ídolos. A revolta leva ao crime - "não sou como eles, mas terei, a ferro e fogo, o que eles têm”.

Haverá limites à obsolescência? Um dia a superprodução fará com que a oferta seja assustadoramente superior à demanda? Tudo indica que não. A indústria há tempos aprendeu que o consumidor é irracional, não se move por princípios, e sim por efeitos. É a emoção que o faz aproximar do balcão.

Aprendeu também a fazer a produção acompanhar a concentração de renda. Já não se fabricam carros populares. Quem mais adquire veículos são as famílias que já possuem ao menos um.

Agora na pós-modernidade, as pessoas já não se relacionam, se conectam. Os encontros não são reais, são virtuais. Já não se vive em sociedade, e sim em rede. Ninguém é excluído, e, sim, deletado.

A intimidade cede lugar à extimidade, na expressão de Bauman. Faz desabar todos os muros da privacidade. A ponto de as pessoas se tornarem mercadorias vendáveis, vitrines ambulantes que esperam ser admiradas, desejadas, invejadas e cobiçadas. Daí o oneroso investimento em academias de ginástica, cosméticos, plásticas etc. Muitos buscam ansiosos ser objetos de desejo. Porque a sua autoestima depende do olhar alheio. E o mercado sabe muito bem manipular essa baixa autoestima.
 

terça-feira, 3 de julho de 2012

Questão ambiental e social

Questão ambiental e social

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais
 
 
A questão ambiental é também uma questão social. A conclusão é da Royal Society, a mais conceituada academia científica do Reino Unido.

Em dois anos de pesquisas ela constatou que não basta falar em preservação ambiental, energias renováveis e desaquecimento global, sem tocar no tendão de Aquiles apontado pelo velho Marx no século 19: a desigualdade social.

Os países ricos e emergentes consomem excessivamente bens naturais, como água e energia. E o fazem através de processos extrativos que não levam em conta danos ambientais e efeitos sobre a população local, como é o caso da construção da usina de Belo Monte, no Brasil, ou o uso de energia nuclear mundo afora.

Aprendemos na escola que o nosso corpo reflete a composição do planeta: 70% de água. Da água do mundo, apenas 2,5% são potáveis. Dessa parcela, 69% estão congelados nos polos da Terra, e 30% que se acham sob o solo (aquíferos) são ainda inacessíveis à atual tecnologia. O resto –140 mil quilômetros cúbicos– encontra-se em lagos, rios etc.

Um estadunidense consome 50 vezes mais água que um indiano. E 500 vezes mais energia. Assim como já se iniciou a guerra fria por alimentos, com o uso de poderosos mísseis como os transgênicos, em breve teremos a guerra pela água. Prevê-se que, em 2025, 1,8 bilhão de pessoas padecerão de escassez de água.

A carência de água deve-se, sobretudo, às mudanças climáticas. Devido ao consumismo, países desenvolvidos e emergentes –cerca de 20 ao todo- emitem 50 vezes mais gases estufa que países pobres. O uso excessivo de agrotóxicos provoca a erosão do solo e o desmatamento prolonga os períodos de estiagem, estimulando movimentos migratórios e acentuando a pobreza.

O planeta ganha, a cada ano, 80 milhões de pessoas, apesar da queda na taxa de fertilidade. Para o neoliberalismo, 80 milhões de consumistas (não confundir com consumidores) em potencial.
Entre 1960 e 2007 a fabricação de novos artefatos tecnológicos –cada vez mais descartáveis– quadruplicou a produção de cobre e chumbo, e aumentou em 77 vezes a exploração de minerais associados à alta tecnologia, como tântalo e nióbio.

A Rio+20, tanto na reunião dos chefes de Estado quanto na Cúpula dos Povos, deveria ter debatido como o consumismo desenfreado e a desigualdade de renda entre os povos afetam o equilíbrio ambiental. Considerar poluição e pobreza como fatores divorciados é adotar uma postura míope, equivocada, frente à degradação da Terra e a ameaça de escassez de seus recursos naturais.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

DECLARAÇÃO FINAL. CÚPULA DOS POVOS NA RIO+20 POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL

DECLARAÇÃO FINAL. CÚPULA DOS POVOS NA RIO+20 POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL. EM DEFESA DOS BENS COMUNS, CONTRA A MERCANTILIZAÇÃO DA VIDA

Movimentos sociais e populares, sindicatos, povos e organizações da sociedade civil de todo o mundo presentes na Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, vivenciaram nos acampamentos, nas mobilizações massivas, nos debates, a construção das convergências e alternativas, conscientes de que somos sujeitos de uma outra relação entre humanos e humanas e entre a humanidade e a natureza, assumindo o desafio urgente de frear a nova fase de recomposição do capitalismo e de construir, através de nossas lutas, novos paradigmas de sociedade.

A Cúpula dos Povos é o momento simbólico de um novo ciclo na trajetória de lutas globais que produz novas convergências entre movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventudes, agricultores/as familiares e camponeses, trabalhadores/as, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, lutadores pelo direito a cidade, e religiões de todo o mundo. As assembleias, mobilizações e a grande Marcha dos Povos foram os momentos de expressão máxima destas convergências.

As instituições financeiras multilaterais, as coalizões a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferência oficial. Em contraste a isso, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.

Há vinte anos o Fórum Global, também realizado no Aterro do Flamengo, denunciou os riscos que a humanidade e a natureza corriam com a privatização e o neoliberalismo. Hoje afirmamos que, além de confirmar nossa análise, ocorreram retrocessos significativos em relação aos direitos humanos já reconhecidos. A Rio+20 repete o falido roteiro de falsas soluções defendidas pelos mesmos atores que provocaram a crise global. À medida que essa crise se aprofunda, mais as corporações avançam contra os direitos dos povos, a democracia e a natureza, sequestrando os bens comuns da humanidade para salvar o sistema econômico-financeiro.

As múltiplas vozes e forças que convergem em torno da Cúpula dos Povos denunciam a verdadeira causa estrutural da crise global: o sistema capitalista associado ao patriarcado, ao racismo e à homofobia.

As corporações transnacionais continuam cometendo seus crimes com a sistemática violação dos direitos dos povos e da natureza com total impunidade. Da mesma forma, avançam seus interesses através da militarização, da criminalização dos modos de vida dos povos e dos movimentos sociais promovendo a desterritorialização no campo e na cidade.

Avança sobre os territórios e os ombros dos trabalhadores/as do sul e do norte. Existe uma dívida ambiental histórica que afeta majoritariamente os povos do sul do mundo que deve ser assumida pelos países altamente industrializados que causaram a atual crise do planeta.

O capitalismo também leva à perda do controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais e serviços estratégicos, que continuam sendo privatizados, convertendo direitos em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à sobrevivência.

A atual fase financeira do capitalismo se expressa através da chamada economia verde e de velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento público-privado, o superestímulo ao consumo, a apropriação e concentração das novas tecnologias, os mercados de carbono e biodiversidade, a grilagem e estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros.

As alternativas estão em nossos povos, nossa história, nossos costumes, conhecimentos, práticas e sistemas produtivos, que devemos manter, revalorizar e ganhar escala como projeto contra-hegemônico e transformador.

A defesa dos espaços públicos nas cidades, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa e solidária, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição e consumo, a mudança da matriz energética, são exemplos de alternativas reais frente ao atual sistema agro-urbano-industrial.

A defesa dos bens comuns passa pela garantia de uma série de direitos humanos e da natureza, pela solidariedade e respeito às cosmovisões e crenças dos diferentes povos, como, por exemplo, a defesa do "Bem Viver” como forma de existir em harmonia com a natureza, o que pressupõe uma transição justa a ser construída com os trabalhadores/as e povos. A construção da transição justa supõe a liberdade de organização e o direito a contratação coletiva e políticas públicas que garantam formas de empregos decentes.

Reafirmamos a urgência da distribuição de riqueza e da renda, do combate ao racismo e ao etnocídio, da garantia do direito a terra e território, do direito à cidade, ao meio ambiente e à água, à educação, a cultura, a liberdade de expressão e democratização dos meios de comunicação, e à saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

fortalecimento de diversas economias locais e dos direitos territoriais garantem a construção comunitária de economias mais vibrantes. Estas economias locais proporcionam meios de vida sustentáveis locais, a solidariedade comunitária, componentes vitais da resiliência dos ecossistemas. A maior riqueza é a diversidade da natureza e sua diversidade cultural associada e as que estão intimamente relacionadas.

Os povos querem determinar para que e para quem se destinam os bens comuns e energéticos, além de assumir o controle popular e democrático de sua produção. Um novo modelo enérgico está baseado em energias renováveis descentralizadas e que garanta energia para a população e não para corporações.

A transformação social exige convergências de ações, articulações e agendas comuns a partir das resistências e proposições necessárias que estamos disputando em todos os cantos do planeta. A Cúpula dos Povos na Rio+20 nos encoraja para seguir em frente nas nossas lutas.

Rio de Janeiro, 15 a 22 de junho de 2012.

Comitê Facilitador da Sociedade Civil na Rio+20 -Cúpula dos Povos

Depois da Rio+20



Depois da Rio+20


Roberto Malvezzi, Gogó: Equipe CPP/CPT do São Francisco. Músico. Filósofo e Teólogo



Como era esperado, a Rio+20 foi mais um espaço de debates, de elevação das questões cruciais da humanidade, que um ponto de soluções. A Cúpula dos povos, mesmo dentro de suas contradições, não deixou de expor a contradição maior de um modo de civilização vampiresco que, para sobreviver, tem que chupar o sangue dos pobres e a seiva da natureza.

O mundo não começou e nem termina na Rio+20. Precisamos ter a noção de processo histórico. Não há um ponto de chegada para humanidade, definitivo, um paraíso sobre a Terra. A humanidade terá que reinventar-se constantemente para responder aos desafios de cada momento de sua trajetória, enquanto existir, enquanto for a espécie dominante. Os predadores não têm a última palavra sobre a história, se é que podemos dividir o mundo entre predadores e vítimas. Talvez essa equação seja possível nos extremos da sociedade, mas não na faixa média.

Os resultados são limitados, os da Cúpula Oficial praticamente inexistentes. Mas, teremos que caminhar, porque novas contradições vão aparecer, inclusive novos impasses. O petróleo continua existindo, mas não é eterno. Mais dois bilhões de seres humanos ocuparão a face da Terra até 2050. Vão precisar de água, comida, ar limpo para respirar. Mas também vão necessitar de moradia, energia, transportes. As cidades vão engarrafar o trânsito. Os fenômenos climáticos extremos vão se agudizar, mesmo que alguns céticos não queiram. Provavelmente teremos novas tragédias, guerras por bens naturais, novo mapa mundial, eliminação de muitas pessoas e boa parte das formas de vida.

A busca da nova síntese civilizacional persiste, sobretudo porque agora as populações originárias – o que resta delas – querem ser sujeitos da história, não apenas um apêndice, ou um atraso, ou uma barreira para o desenvolvimento. O etnocentrismo do mundo iluminista não vai subsistir por muito tempo, se é que já não sucumbiu às contribuições inestimáveis desses povos para a sobrevivência da humanidade. A governança mundial não está à altura dos desafios da época, mas eles também terão que mudar, senão serão varridos pelas contradições da história.

Momento maravilhoso esse que atravessamos. Viver nessa época é um privilégio que deveríamos agradecer a Deus, aos deuses, à gratuidade da vida, todos os dias.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Desafios à Rio+20

Desafios à Rio+20
Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais

Iniciada há poucos dias, Rio+20 abriga chefes de Estado, e ambientalistas e movimentos sociais na Cúpula dos Povos. O evento corre o risco de frustrar expectativas caso não tenha, como ponto de partida, compromissos assumidos na Agenda 21 e acordos firmados na Eco-92 e reiterados na Conferência de Johanesburgo, em 2010.

Há verdadeira conspiração de bastidores para, na Rio+20, escantear os princípios do desenvolvimento sustentável e os Objetivos do Milênio, e impor as novas teses da "economia verde”, sofisma para encobrir a privatização dos recursos naturais, como a água, e a mercantilização da natureza.

O enfoque dos trabalhos deverá estar centrado não nos direitos do capital, e sim na urgência de definir instrumentos normativos internacionais que assegurem a defesa dos direitos universais de 7 bilhões de habitantes do planeta e a preservação ambiental.

Cabe aos governos reunidos no Rio priorizar os direitos de sustentabilidade, bem-estar e progresso da sociedade, entendidos como dever de garantir a todos os cidadãos serviços essenciais à melhor qualidade de vida. Faz-se necessário modificar os indicadores de desenvolvimento, de modo a levarem em conta os custos ambientais, a equidade social e o desenvolvimento humano (IDH).

A humanidade não terá futuro sem que se mudem os padrões de produção, consumo e distribuição de renda. O atual paradigma capitalista, de acumulação crescente da riqueza e produção em função do mercado, e não das necessidades sociais, jamais haverá de erradicar a miséria, a desigualdade, a destruição do meio ambiente. Migrar para tecnologias não poluentes e fontes energéticas alternativas à fóssil e à nuclear é imperativo prioritário.

Nada mais cínico que as propostas "limpas” dos países ricos do hemisfério Norte. Empenham-se em culpar os países do hemisfério Sul quanto à degradação ambiental, no esforço de ocultar sua responsabilidade histórica nas atividades de suas transnacionais em países emergentes e pobres. Há que desconfiar de todas as patentes e marcas qualificadas de "verdes”. Eis aí um novo mecanismo de reafirmar a dominação globocolonialista.

O momento requer uma convenção mundial para controle das novas tecnologias, baseada nos princípios da precaução e da avaliação participativa. Urge denunciar a obsolescência programada, de modo a dispormos de tecnologias que assegurem o máximo de vida útil aos produtos e beneficiem a reciclagem, tendo em vista a satisfação das necessidades humanas com o menor custo ambiental.

À Rio+20 se impõe também o desafio de condenar o controle do comércio mundial pelas empresas transnacionais e o papel da OMC (Organização Mundial do Comércio) na imposição de acordos que legitimam a desigualdade e a exclusão sociais, impedindo o exercício de políticas soberanas. Temos direito a um comércio internacional mais justo e em consonância com a preservação ambiental.

Sem medidas concretas para frear a volatilidade dos preços dos alimentos e a especulação nos mercados de produtos básicos, não haverá erradicação da fome e da pobreza, como preveem, até 2015, os Objetivos do Milênio.

Devido à crise financeira, parcela considerável do capital especulativo se dirige, agora, à compra de terras em países do Sul, fomentando projetos de exploração de recursos naturais prejudiciais ao meio ambiente e ao equilíbrio dos ecossistemas.

A Rio+20 terá dado um passo importante se admitir que, hoje, as maiores ameaças à preservação da espécie humana e da natureza são as guerras, a corrida armamentista, as políticas neocolonialistas. O uso da energia nuclear para fins pacíficos ou bélicos deveria ser considerado crime de lesa-humanidade.

Participarei da Cúpula dos Povos para reforçar a proposta de maior controle da publicidade comercial, da incitação ao consumismo desmedido, da criação de falsas necessidades, em especial quando dirigidas a crianças e jovens.

Educação e ciência precisam estar a serviço do desenvolvimento humano e não do mercado. Uma nova ética do consumo deve rejeitar produtos decorrentes de práticas ecologicamente agressivas, trabalho escravo e outras formas de exploração.

Enfim, que se faça uma reavaliação completa do sistema atual de governança ambiental, hoje incapaz de frear a catástrofe ecológica. Um novo sistema, democrático e participativo, deve atacar as causas profundas da crise e ser capaz de apresentar soluções reais que façam da Terra um lar promissor para as futuras gerações.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A terceira crise do capitalismo

A terceira crise do capitalismo
Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais

A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.

O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa "saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.

Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a "saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.

E agora, José?

Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.

Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.

Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.

O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.

A "saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.

Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).

Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.

O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.

É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.

Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, "a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.

*Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Casa da sogra

Casa da sogra

 
Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais
 
 
Sábado, 28 de abril, comemora-se, no Brasil, o Dia da Sogra. O calendário de efemérides está repleto de dias consagrados a quase todos os galhos da árvore genealógica. Predomina, por razões óbvias, o Dia das Mães. Mãe todos temos, com certeza.

O Dia da Sogra deve ter sido incluído por proposta de algum político corrupto que, tendo escutado ofensas óbvias à sua progenitora, decidiu homenagear a mãe de sua mulher. Ou de suas mulheres, embora o calendário singularize (sogra) o que pluraliza na efeméride de maio (mães).

Sogras padecem no anedotário. "Feliz foi Adão que não teve sogra, nem caminhão”, li no para-choque de uma jamanta na Via Dutra. Cinco coisas que ninguém jamais viu: cabeça de bacalhau; mendigo careca; ex-corrupto; santo de óculos; e retrato de sogra na sala.

Faz-se de um lugar ou ambiente "casa da sogra” quando alguém se julga no direito de abusar da hospitalidade de parentes ou amigos. Na casa da sogra tudo é permitido, até a má educação e a falta de higiene.

A cascata de escândalos do caso Carlinhos Cachoeira, com perdão da redundância, projeta o Brasil como a própria casa da sogra. Muitos políticos – há exceções, felizmente - adotam três discursos: o eleitoral, da captação de votos; o partidário, das articulações de bastidores; e o salafrário, para amealhar dinheiro e poder.

Inúmeros empresários e comerciantes se queixam de que, no Brasil, não se vence licitações nem se obtém recurso público sem "molhar” a mão de políticos e funcionários do governo. A prática já está incorporada às negociações entre empresas privadas ou pessoas e agentes públicos. Amigo meu, ao ver sua moto recuperada pela polícia, se espantou com a lisura do investigador, que não lhe pediu nem um centavo.

Raros os políticos brasileiros que vieram de berço esplêndido. E todos sabem quão cara é uma campanha eleitoral. Essa vulnerabilidade é a porta de entrada dos corruptores, em geral travestidos de lobistas. Aproximam-se do político e se tornam facilitadores de suas vontades e necessidades: empregos aos parentes; viagens em jatinhos; férias em locais paradisíacos; presentes caros etc.

Na primeira fase, o corruptor nada pede, apenas oferece. Demonstra um desprendimento e dedicação ao político de fazer inveja a madre Teresa de Calcutá. Essa aproximação, que socialmente faz o político passar da classe econômica à executiva, introduzido aos prazeres privativos do mundo dos ricos, cria vínculos de amizade.

A segunda fase se inicia quando o político se sente na obrigação de ser grato ao amigo. Em que posso ajudá-lo? Ora, o amigo tem seus amigos: as empresas que o abastecem de recursos para abrir caminhos na intrincada burocracia da floresta governamental. Começam então as facilitações obtidas pelo político: licitações fajutas; informações privilegiadas; nomeações convenientes; tráfico de influência etc.

A terceira fase da transformação do exercício de um mandato popular em casa da sogra é o caixa de campanha. O político não pode perder eleição. E para ganhá-la precisa de visibilidade (poucos a alcançam) e dinheiro (imprescindível). Criam-se o caixa um, legal, declarado à Justiça Eleitoral, e o caixa dois, por baixo dos panos, abastecido pelo amigo lobista e outras vias escusas.

É possível acabar com a corrupção? No coração humano, anabolizado por ambições desmedidas, jamais. Há, contudo, antídotos objetivos: financiamento público das campanhas eleitorais; controle da administração pública pela sociedade civil; ficha limpa também quanto ao patrimônio familiar acumulado; apurações rápidas e punições rigorosas aos corruptos.

Isso depende de reforma política, que o governo e o Congresso tanto protelam. Enquanto perdurar o atual sistema político, contaminado por 21 anos de ditadura militar, como a isonomia de representações estaduais no Senado, os ratos da corrupção haverão de trafegar à vontade pelos buracos do queijo suíço das maracutaias.

O Brasil deixará de ser a casa da sogra quando nossa indignação se converter em mobilização e proposta.


*Frei Betto é escritor, autor do romance "Minas do Ouro”(Rocco), entre outros livros.

Vende-se a natureza

Vende-se a natureza

Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais

Às vésperas da Rio+20 é imprescindível denunciar a nova ofensiva do capitalismo neoliberal: a mercantilização da natureza. Já existe o mercado de carbono, estabelecido pelo Protocolo de Kyoto (1997). Ele determina que países desenvolvidos, principais poluidores, reduzam as emissões de gases de efeito estufa em 5,2%.

Reduzir o volume de veneno vomitado por aqueles países na atmosfera implica subtrair lucros. Assim, inventou-se o crédito de carbono. Uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivale a um crédito de carbono. O país rico ou suas empresas, ao ultrapassar o limite de poluição permitida, compra o crédito do país pobre ou de suas empresas que ainda não atingiram seus respectivos limites de emissão de CO2 e, assim, fica autorizado a emitir gases de efeito estufa. O valor dessa permissão deve ser inferior à multa que o país rico pagaria, caso ultrapassasse seu limite de emissão de CO2.

Surge agora nova proposta: a venda de serviços ambientais. Leia-se: apropriação e mercantilização das florestas tropicais, florestas plantadas (semeadas pelo ser humano) e ecossistemas. Devido à crise financeira que afeta os países desenvolvidos, o capital busca novas fontes de lucro. Ao capital industrial (produção) e ao capital financeiro (especulação), soma-se agora o capital natural (apropriação da natureza), também conhecido por economia verde.

A diferença dos serviços ambientais é que não são prestados por uma pessoa ou empresa; são ofertados, gratuitamente, pela natureza: água, alimentos, plantas medicinais, carbono (sua absorção e armazenamento), minérios, madeira etc. A proposta é dar um basta a essa gratuidade. Na lógica capitalista, o valor de troca de um bem está acima de seu valor de uso. Portanto, tais bens naturais devem ter preços.

Os consumidores dos bens da natureza passariam a pagar, não apenas pela administração da "manufatura” do produto (como pagamos pela água que sai da torneira em casa), mas pelo próprio bem. Ocorre que a natureza não tem conta bancária para receber o dinheiro pago pelos serviços que presta. Os defensores dessa proposta afirmam que, portanto, alguém ou alguma instituição deve receber o pagamento - o dono da floresta ou do ecossistema.

A proposta não leva em conta as comunidades que vivem nas florestas. Uma moradora da comunidade de Katobo, floresta da República Democrática do Congo, relata:

"Na floresta, coletamos lenha, cultivamos alimentos e comemos. A floresta fornece tudo, legumes, todo tipo de animal, e isso nos permite viver bem. Por isso que somos muito felizes com nossa floresta, porque nos permite conseguir tudo que precisamos. Quando ouvimos que a floresta poderia estar em perigo, isso nos preocupa, porque nunca poderíamos viver fora da floresta. E se alguém nos dissesse para abandonar a floresta, ficaríamos com muita raiva, porque não podemos imaginar uma vida que não seja dentro ou perto da floresta. Quando plantamos alimentos, temos comida, temos agricultura e também caça, e as mulheres pegam siri e peixe nos rios. Temos diferentes tipos de legumes, e também plantas comestíveis da floresta, e frutas, e todo de tipo de coisa que comemos, que nos dá força e energia, proteínas, e tudo mais que precisamos.”

O comércio de serviços ambientais ignora essa visão dos povos da floresta. Trata-se de um novo mecanismo de mercado, pelo qual a natureza é quantificada em unidades comercializáveis.

Essa ideia, que soa como absurda, surgiu nos países industrializados do hemisfério Norte na década de 1970, quando houve a crise ambiental. Europa e EUA tomaram consciência de que os recursos naturais são limitados. A Terra não tem como ser ampliada. E está doente, contaminada e degradada.

Frente a isso, os ideólogos do capitalismo propuseram valorizar os recursos naturais para salvá-los. Calcularam o valor dos serviços ambientais entre US$ 16 e 54 trilhões (o PIB mundial, a soma de bens e serviços, totaliza atualmente US$ 62 trilhões). "Está na hora de reconhecer que a natureza é a maior empresa do mundo, trabalhando para beneficiar 100% da humanidade – e faz isso de graça”, afirmou Jean-Cristophe Vié, diretor do Programa de Espécies da IUCN, principal rede global pela conservação da natureza, financiada por governos, agências multilaterais e empresas multinacionais.

Em 1969, Garret Hardin publicou o artigo "A tragédia dos comuns” para justificar a necessidade de cercar a natureza, privatizá-la, e assim garantir sua preservação. Segundo o autor, o uso local e gratuito da natureza, como o faz uma tribo indígena, resulta em destruição (o que não corresponde à verdade). A única forma de preservá-la para o bem comum é torná-la administrável por quem possui competência – as grandes corporações empresariais. Eis a tese da economia verde.

Ora, sabemos como elas encaram a natureza: como mera produtora de ‘commodities’. Por isso, empresas estrangeiras compram, no Brasil, cada vez mais terras, o que significa uma desapropriação mercantil de nosso território.


* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros.

A máscara rachou e a corrupção vazou


A máscara rachou e a corrupção vazou

Fr. Marcos Sassatelli: Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra

Assistimos, nestes últimos tempos, a um espetáculo deprimente. O tema dominante da mídia, nacional e regional, é a corrupção. Parece que estamos mergulhados num mar de lama. A teia de corrupção - comandada pelo empresário Carlinhos Cachoeira - é tão extensa e complexa, que se torna até difícil fazer uma síntese do que está acontecendo.

Antes das minhas reflexões, para apresentar o "estado da questão” sobre o caso Carlinhos Cachoeira, sirvo-me de uma reportagem da Folha de S. Paulo. "Cachoeragate/O esquema. A Máquina de Cachoeira. Entenda como operava, segundo a Polícia Federal, o esquema montado pelo empresário para que políticos atuassem em favor de seu grupo no Congresso e em Governos estaduais”.

A respeito da Operação Monte Carlo: Após 15 meses de investigação, a Polícia Federal (PF) prendeu, em fevereiro deste ano, o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. O contraventor tem 48 anos de idade, herdou do pai Sebastião as atividades do jogo do bicho nos anos 1960 - 1970 e ajudava a recolher apostas nas bancas de Anápolis - GO. "Ganhou notoriedade em 2004, quando veio a público um vídeo de 2002 em que negociava propina para fazer negócios no Governo do Rio. Seu interlocutor, Waldomiro Diniz, mais tarde foi assessor do ex-ministro José Dirceu”. Segundo a apuração feita, "ele explorava jogos ilegais e tinha um laboratório farmacêutico, entre outros negócios. Nos dias seguintes, diversas relações de Cachoeira vieram à tona”.

A respeito dos Políticos envolvidos: "Escutas telefônicas feitas pela PF mostram que Cachoeira tinha influência sobre políticos que defendiam interesses de seu grupo no Congresso e em Governos estaduais. A relação que mais ganhou destaque foi com o senador Demóstenes Torres”. "Políticos receberam ao menos R$ 780 mil em doações de firmas contratadas pelo grupo de Cachoeira e abastecidas por recursos cuja origem é a Delta, segundo a PF”.

A respeito dos Governos envolvidos: "Segundo as investigações, Cachoeira tinha pessoas de sua confiança em postos-chave dos Governos de Goiás e do Distrito Federal, além de influência em Órgãos federais, como a Anvisa”. A PF, "com a autorização da Justiça, gravou desde 2009 conversas de Cachoeira e de pessoas que trabalhavam para ele com políticos e empresários”.As gravações "sugerem relação entre o grupo e os governadores (de Goiás e do Distrito federal), mas não mostram conversas diretas entre eles. Os dois admitem contatos ocasionais com Cachoeira, mas negam influência dele em seus Governos”.

A respeito das Empresas envolvidas: "As investigações sugerem também que o grupo trabalhou para defender interesses da construtora Delta nos Estados onde ela tinha contratos. A PF suspeita também que o laboratório Vitapan era usado por Cachoeira para lavar dinheiro do jogo ilegal”. Sempre segundo a PF, "Cachoeira controlava uma rede de empresas de fachada que movimentaram milhões de reais nos últimos anos. Pelo menos R$ 39 milhões foram repassados pela construtora Delta para elas” (Folha de S. Paulo, 20/04/12, p. A8. Vejam, na íntegra, os documentos da Operação Monte Carlo, nos sites: www.jb.com.br/pais/noticias/2012/04/04e www.leidoshomens.com.br).

No dia 19 do mês corrente, com o apoio de 72 dos 81 senadores e de 396 dos 513 deputados, foi criada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que vai apurar a ligação de políticos e agentes públicos com Carlinhos Cachoeira. O documento de criação da CPMI especifica como alvo da investigação pelo menos 15 tipos de crimes cometidos pelo contraventor e seu grupo: tráfico de influência, fraude nas licitações, corrupção e formação de quadrilha, entre outros. Especifica também a necessidade de investigar todas as empresas "associadas" a Cachoeira, o que inclui a Delta Construções, maior empreiteira do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O documento se refere a "empresas supostamente legais, controladas por Cachoeira ou que a ele estejam associadas, direta ou indiretamente". E afirma: "Urge enfrentar o desafio de destrinçar as relações entre o poder público e as atividades do senhor Carlos Augusto Ramos". O enfrentamento da ligação do contraventor com agentes públicos "é ponto de honra para o Congresso Nacional". "Está em causa o resguardo da própria lisura do devido processo legislativo".

Será que podemos acreditar nas palavras dos parlamentares? Será que é isso mesmo o que eles querem ou será que eles (o que é mais provável) não estão debochando da nossa cara? Vejam o cúmulo do absurdo e do descaramento. A CPMI, criada para investigar os negócios do empresário Carlinhos Cachoeira, terá entre seus integrantes "fichas-sujas”: o ex-presidente Fernando Collor (PTB-AL), que foi afastado do cargo por corrupção e hoje é senador, e outros 16 parlamentares com pendências na Justiça, como os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) (Cf. Folha de S. Paulo, Ib., p. A4). É muita maracutaia! É muita falta de respeito para com o povo!

Diversas pessoas, diante dessa teia de corrupção (lembremos também o "mensalão” e outros escândalos de corrupção) ficam surpresas e decepcionadas com determinados políticos, que sempre se apresentaram como defensores da "moralidade”. É compreensível, mas não podemos esquecer que, atrás dessa máscara de "moralidade”, existe "um sistema econômico iníquo”(Documento de Aparecida - DA, 385), ou melhor, um sistema socioeconômico, político, ecológico e cultural iníquo, corrupto, podre e imoral. A iniqüidade, a corrupção, a podridão e a imoralidade são sistêmicas, estruturais. Os atos de corrupção - que mais aparecem - são simples vazamentos (erupções) desse sistema. A máscara rachou e a corrupção vazou. Para os políticos e agentes públicos desse sistema iníquo, o importante não é "ser éticos”, mas "parecer éticos”.

Colaborar, com o nosso voto e a nossa prática política para fortalecer esse sistema dominante, é um crime. Unidos e organizados - os Movimentos Sociais Populares, os Sindicatos autênticos (sobretudo de Trabalhadores), as Igrejas, as Pastorais Sociais e todas as pessoas que acreditam num mundo novo - precisamos tomar consciência da urgente necessidade de aproveitar os espaços e as brechas possíveis (abrindo sempre novos espaços e novas brechas) para fazer acontecer um projeto socioeconômico, político, ecológico e cultural alternativo: um projeto popular, justo e fraterno. A esperança já é certeza de vitória.


Goiânia, 25 de abril de 2012.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FELIZ 2011

FELIZ 2011
Frei Betto *

Para ti e para mim, um feliz ano-novo. Não mera troca numérica de calendário, de quem mantém seu corpo inerte, preso às raízes da insensatez. Nem a sucessão de dias que se repetem no giro cíclico dos gregos antigos, desprovidos de senso histórico. Nem a multiplicação das rugas que se acumulam em nossos corações, oxidadas pela covardia e a saudade de não ser o que se é.

Anseio por um ano-novo capaz de reacender em nós energias generosas, consciência crítica, solidariedade discreta, afetos adormecidos, e a irrefreável vitalidade de quem reinventa o amor a cada dia. Um novo tempo de alegorias, no qual a poesia nos embriague a alma.

Um novo ano despido de soberbas, de evocações ególatras, de rancores asfixiantes e da indizível inveja causada pela felicidade alheia. Ano livre de rumores nefastos, incontinência da língua, indiferença à dor e exacerbação de tudo aquilo que, em nós, esculpe o perfil ácido da desumanidade.

Para ti e para mim desejo um ano-novo em que cada manhã ressoe como o cantar de laudes sob o esplendor de uma revoada de pássaros. E que sejamos despertados pelo afago prenhe de alvíssaras. Sejam os nossos gestos expressões litúrgicas de bem-querer e gratidões.

Não desejo um novo ano de velhos vícios arraigados, como não considerar suficiente o necessário, acumular supérfluos nas gavetas da casa e do coração ou a leniência perante as injustiças. Nenhum ano pode ser novo se arrastamos vida afora nossas almas incendiadas pela ira, o humor de mãos dadas com o rancor, o orgulho como escudo frente aos que apontam nossos erros.

Quero, para ti e para mim, um ano-novo em que a partilha do pão instaure a paz e no qual toda paixão aflore em duradouro amor. Um ano no qual o tempo se desenlace como um tecido fino e transparente, a enlevar-nos na rota do transcendente. Ano de silente contemplação do milagre da Criação e cuidadosa proteção da mãe natureza.

Faço votos de que em 2011 a cegueira apague nossas fúteis ilusões e que brotos de saudáveis quimeras palmilhem a estrada que conduz ao mais íntimo de nós mesmos. Seja para nós um ano de muita fortuna, inflado de projetos promissores, destituído de mesquinharias e perjúrios.

Ano bom é o que traz efervescência espiritual, o vinho a inebriar-nos do sagrado, a alma tecida de alegrias inefáveis, os passos movidos pela vontade alada, o vigor juvenil de quem não encara a velhice como doença. Ano de reavivar antigas amizades, libertar-se dos apegos vorazes, trocar a tagarelice pelo aconchego reflexivo dos livros e deixar a música inundar nossos mais recônditos sentimentos.

Ano-novo é o que transfigura nossas mais secretas intenções e projeta luz nas veredas escavadas por cada uma de nossas positivas atitudes. Assim, haverão de cair as escamas de nossos olhos, os ouvidos acolherão a melodia sideral, o perfume do otimismo nos inebriará, e de nossos lábios brotarão cânticos de aleluia.

Para ti e para mim seja o ano de 2011 ninho de férteis esperanças e senda primaveril rumo a outros mundos possíveis. À mesa, a gratuidade inconsútil; à porta, nossas resistência desarmadas; à sala, um rumor de anjos. E seja toda a casa reduto de sabores e saberes agradáveis ao paladar e à inteligência.

Seja novo, para ti e para mim, o ano entrante, não por reiniciar a sucessão de meses, semanas e dias, e sim por revitalizar nossos bons propósitos, livrar-nos da letargia frente aos desafios espelhados na utopia e arrancar de nosso âmago toda erva daninha semeada por ambições desmedidas.

Novo por incutir em nós a modéstia translúcida de avós afetuosas, o fervor espiritual dos místicos, a exuberância dos bailarinos a multiplicarem as potencialidades do corpo. Ano de romper barreiras do preconceito, derrubar cercas da ganância, fertilizar com sementes altruístas o chão no qual pisamos.

Para ti e para mim, um feliz ano-novo no qual a vida seja diariamente celebrada como dom de Deus, dádiva amorosa, encantadora aventura.

Ao longo deste ano esteja sempre presente, em nossas mentes e em nosso agir, que viver é muito perigozo.


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.