quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Eu defendo o socialismo democrático

"Socialismo sem liberdade, socialismo não é. Liberdade sem socialismo, liberdade não pode ser."(João Mangabeira)

Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas antes de ser socialista, sou um democrata radical. Portanto assim como sou anti-capitalista, também sou contra aquele modelo autoritario e burocratico de socialismo que existiu na antiga URSS e no Leste Europeu, modelo ainda existente em Cuba e em alguns países da Ásia. Defendo o socialismo com liberdade e democracia, tendo por base principalmente a filosofia marxista.

E na filosofia marxista, uma das minhas influencias se encontram no eurocomunismo, desenvolvido por Enrico Berlinguer, secretário geral do Partido Comunista Italiano entre 1972 e 1984.

"Um dos capítulos mais importantes da história do socialismo democrático, no decorrer do século XX, encontra-se localizado nas reflexões empreendidas pelos intelectuais (militantes e dirigentes) reunidos em torno do Partido Comunista Italiano (PCI).

Do seu interior adveio uma boa parte das mais ricas contribuições para a renovação do pensamento socialista de matriz marxista, num momento em que este último rumava de maneira acelerada para o esclerosamento teórico, em virtude das vicissitudes da construção do sistema soviético a partir de 1917.(...)

Fundado pelas reflexões levadas a cabo por Antonio Gramsci durante os anos de luta contra o fascismo e desenvolvido por Palmiro Togliatti nos anos mais sombrios da Guerra Fria, o pensamento comunista italiano teve um terceiro salto de qualidade, em meio ao avanço da barbárie terrorista, com as propostas de Enrico Berlinguer.

Nos quinze anos em que esteve à frente do PCI — da sua eleição à vice-secretaria-geral no XII Congresso, em 1969, à sua morte, em 1984 —, Berlinguer foi responsável pela difícil obra de atualizar a "via italiana ao socialismo" em meio a uma significativa onda de transformações socioeconômicas e político-ideológicas, em nível mundial.

Então, se, por um lado, os fundamentos keynesiano-fordistas do Estado do Bem-Estar-Social começam a ser superados por um capitalismo cada vez mais flexibilizado, resultado da união entre política econômica monetarista e modelo de produção toyotista, por outro lado, uma série de novos movimentos sociais e políticos sai às ruas questionando as autoridades existentes, seja nos países capitalistas, seja nos países do chamado "socialismo real".

Na Itália, em particular, tais transformações foram implementadas num ambiente progressivamente inóspito à vida democrática. O medo de que um partido comunista chegasse ao comando da nação por vias democráticas — e não por um caminho insurrecional — acabou por acarretar uma sinistra situação, na qual extrema-direita fascista, extrema-esquerda autonomista e órgãos do próprio aparelho de Estado uniram-se em torno da prática de ações terroristas, com o intuito de inviabilizar as regras do jogo democrático, desestabilizando as instituições nacionais.

Porém, foi exatamente em meio a esta "estratégia da tensão" implementada nos anos setenta, na Itália, que Berlinguer formulou um conjunto de propostas teórico-políticas voltadas para o reforço dos vínculos existentes entre socialismo e democracia, como se da "escuridão" da tentação autoritária nascesse realmente a "luz" da radicalização da democracia.

O projeto de radicalização da democracia proposto por Berlinguer, a partir da matriz comunista originária, deve ser observado dentro da perspectiva gradualista trilhada pelos comunistas italianos(...)

Junto aos "elementos do socialismo", apresenta-se como segunda idéia-chave do projeto político berlingueriano a defesa do "vlor universal da democracia". Anunciada em Moscou, no mês de novembro de 1977, em meio às comemorações pela passagem dos sessenta anos da Revolução Russa, a idéia da "democracia como valor universal" representou a cristalização do forte dissenso existente em relação às diretrizes impostas pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) ao movimento comunista internacional e à forma assumida pelos regimes socialistas da União Soviética e do Leste europeu — dissenso que se vinha constituindo de forma cada vez mais intensa desde a repressão armada à "Primavera de Praga", na Tchecoslováquia, em 1968.

Ao polemizar abertamente com os dirigentes soviéticos, Berlinguer pretendia mostrar suas severas objeções à forma despótica assumida pelo "socialismo real". Pensar uma sociedade socialista, dirá na ocasião Berlinguer, implica imaginar "uma sociedade nova, que garanta todas as liberdades individuais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não-ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal".

Tal tese atrairá dois outros partidos comunistas da Europa Ocidental para um projeto conjunto, tecido por Berlinguer com a real intenção de ampliar a "via italiana ao socialismo" na direção de uma "via ocidental ao socialismo" — o "eurocomunismo". Fruto da interlocução com o Partido Comunista Espanhol (PCE) e o Partido Comunista Francês (PCF), o "eurocomunismo" situou como premissa de uma sociedade socialista o "desenvolvimento pleno da democracia" e o "direito de cada povo decidir livremente a forma do desenvolvimento socialista e do governo estabelecido".

Para Berlinguer, a exigência da vinculação entre socialismo e democracia estaria no centro de uma "terceira fase" da história do movimento operário, distinta dos tempos da unidade social-democrata novecentista (primeira fase) e dos anos de ruptura comunista pós-1917 (segunda fase) — uma forma alternativa encontrada pelo comunista sardo para abordar o problema da "terceira via" entre a social-democracia e o comunismo.

A reforçar em Berlinguer o sentimento de que aquilo que se desenvolvia no Leste cada vez menos se relacionava com a "terceira fase" da história do movimento operário, por ele propugnada, foram a invasão soviética no Afeganistão (1979) e o golpe de Estado dado na Polônia diante do avanço do sindicato Solidariedade (1981). Não lhe restava, então, outra coisa a não ser ratificar a ruptura definitiva que se tornava cada vez mais inevitável. Berlinguer declara, então, que a "fase aberta pela Revolução de Outubro encontrava-se irremediavelmente superada, tendo a sua capacidade propulsora sido esgotada".

Se o diálogo com os soviéticos assinalou uma parte do esforço teórico-político de Berlinguer, a outra metade das suas preocupações situava-se na necessidade de se confrontar com a Democracia Cristã, instrumento político responsável, desde a derrota do fascismo, pela manutenção do status quo na Itália.

Escaldado pela trágica experiência do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, que derrubou o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende, no Chile, Berlinguer intui a necessidade da formação de um bloco de forças que viesse a impedir a repetição dos mesmos fatos em solo italiano. Para tal, apresenta a proposta de um "novo compromisso histórico" entre as três grandes forças responsáveis pela derrota do fascismo e pela construção da República italiana: os comunistas, os socialistas e os católicos.

De fato, no período compreendido entre 1973 e 1979, Berlinguer depositará grande parte das suas energias políticas na tentativa de erigir um governo pautado no entendimento entre o Partido Comunista e a Democracia Cristã, exatamente numa época em que, com raras exceções, como a do líder democrata-cristão Aldo Moro (por isso mesmo seqüestrado e assassinado pelos terroristas das Brigadas Vermelhas), a palavra "entendimento" era progressivamente retirada dos dicionários.

Através da estratégia berlingueriana do "compromisso histórico", o PCI alcançou, em 1975, o teto máximo em eleições políticas de 34,4% dos votos, aproximando-se em muito dos 38,7% dados à DC. No entanto, ela não foi forte o suficiente para se contrapor àqueles que continuavam a pensar a democracia italiana como um espaço não aberto a um governo com a participação dos comunistas, um raciocínio que atravessava os mais diversos posicionamentos políticos — da extrema-esquerda à extrema-direita, passando pelo centro católico e pela esquerda socialista liderada por Bettino Craxi.

Tal universo contribui em muito para que, na última fase da sua vida, Berlinguer visse no sistema político italiano uma fratura em relação ao próprio país, assumindo a crise política um novo conteúdo de ordem moral. Com a "questão moral" e a substituição da defesa de um governo de "solidariedade nacional" por um outro de "alternativa democrática", Berlinguer antevê aquilo que viria a ser destruído, na Itália, pela "Operação Mãos Limpas": um sistema político montado sobre a promiscuidade das relações entre partidos (DC e PSI), máfia, loja maçônica e empresariado, com a benevolência do próprio aparelho estatal. Uma promiscuidade que Berlinguer não teria a ocasião de ver desvelada."

(trecho de "Enrico Berlinguer", de Marco Mondaini)



A Nova Política Economica


A falência do chamado "socialismo real" não se deveu unicamente a ausência de democracia política, mais também devido a completa estatização da economia, que gerou uma burocracia totalitaria. Durante a Guerra Civil(1918-1921) e após a guinada esquerdista promovida por Stalin em 1928, os bolcheviques buscaram construir o socialismo por decreto, promovendo assim a ruptura entre a aliança operário-camponesa, o que ocasionou o afastamento das massas em relação ao Partido Comunista.

O socialismo não pode ser construido por decreto, precisa ser construido processualmente, como a própria história comprova ao observarmos o sucesso da Nova Política Economica, adotada na URSS entre 1921 e 1928. Uma economia mista, onde o mercado e a planificação democrática da economia coexistem, com a propriedade coletiva(e não estatal) sendo implementada nos setores estratégicos, enquanto a pequena e média propriedade privada continuam funcionando em outros setores, sobre a regulação do Estado. Esse mesmo sucesso pode ser observado hoje em Cuba, que graças a abertura economica, conseguiu sobreviver a crise vivenciada em virtude da extinção da URSS, e hoje começa a se recuperar.

"O socialismo não pode ser imposto por decreto: é um processo em desenvolvimento". (Salvador Allende)

A Nova Política Economica só não foi mais eficiente, em virtude da ausência de uma democracia socialista na URSS. O mesmo podemos dizer hoje com relação a Cuba. A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, reconhecendo na democracia um valor universal, ao mesmo tempo que deve abandonar o fetiche pelo estatismo. O mercado e a propriedade privada devem coexistir com a planificação e com a propriedade coletiva na futura sociedade socialista, principalmente na sua fase inicial.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; in Teoria e Debate nº 16)


Leiam o texto abaixo e reflitam:

O resgate de uma história

Pacto ou autoritarismo. A visão de Bukharin


Daniel Aarão Reis *


Quase vinte anos depois de sua publicação, é oferecida aos leitores brasileiros a biografia política de Nikolai Ivanovitch Bukharin, por Stephen Cohen. Sobre esse revolucionário já havia sido traduzida, há dez anos, a pungente obra do historiador russo Roy Medvedev ( Os últimos anos de Bukharin)... Tratando-se da compreensão da trajetória do teórico que era, segundo Lenin, o "preferido do partido", já contamos, felizmente, em 1990, com a obra de Cohen e com a excelente antologia Bukharin, organizada por Jacob Gorender.

Stephen Cohen permaneceu à margem dos modismos e das correntes hegemônicas da historiografia sobre a Revolução Russa. Não se deixando aprisionar pelas luzes que focalizaram, durante décadas, os atores que estavam no centro da ribalta – Trotski e Stalin –, defende, convincentemente em paciente e minuciosa investigação, o papel decisivo assumido por Nikolai Bukharin, nas lutas políticas, que se travaram ao longo dos anos 20 na União Soviética, fundamentais para o processo de construção do socialismo e para o desfecho que hoje conhecemos como "socialismo realmente existente".

O interesse pela trajetória e propostas de Bukharin já se afirmara nos anos 50 e 60, sobretudo no decorrer do período de reformas, dirigido por Nikita Kruchev. Mas receberia formidável impulso, a partir de 1985, quando, no âmbito da perestroika, a referência à Nova Política Econômica (NEP), associada intimamente a Bukharin, passou a ser obrigatória nos discursos de Mikhail Gorbatchev, que nela se inspirou para seu ambicioso projeto reformista.

O que foi exatamente a NEP? Qual seu significado histórico? Em que sentido pode servir de referência para as reflexões atuais sobre o socialismo?

A NEP começou a ser formulada e implementada em 1920-1921, ao se consolidar, de fato, o governo revolucionário bolchevique. A Rússia de então estava literalmente arrasada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918) e pela Guerra Civil (1918-1921). Havia fome e epidemias por toda a parte, a indústria e os transportes estavam profundamente debilitados (alguns setores apresentavam índices equivalentes aos de fins do século XVIII), a agricultura paralisada, à espera de definições políticas, o descontentamento agitava a população urbana e provocava revoltas no campo. A expressão mais clara desta efervescência foi a insurreição dos marinheiros de Kronstadt contra os bolcheviques, aniquilada pelo exército vermelho em março de 1921.

A política dos bolcheviques durante a Guerra Civil, o chamado Comunismo de Guerra, revelara-se voluntarista, irrealista e desastroso. Semeara muitas ilusões sem abrir perspectivas. Impunha-se uma reviravolta. Por outro lado, a revolução internacional não acontecera e parecia muito claro que não adiantava sonhar com ela, pelo menos a curto prazo. A maioria, principalmente após a revolta de Kronstadt, compreendia a necessidade de mudanças. Elas tomariam a forma de uma Nova Política Econômica.

Segundo Cohen, ela começou "sub-repticiamente" e não como "plano predeterminado" (ps. 128 e 153). A principal novidade: garantia de liberdade de produção e de comércio para cerca de 25 milhões de pequenos camponeses, recém-convertidos em proprietários na revolução agrária. A intervenção do Estado se restringia à cobrança do imposto. Mais tarde, através de sucessivos decretos, as liberdades comerciais seriam ampliadas e consolidadas com a permissão de arrendar terras e tocar pequenas indústrias, mantendo assalariados etc. O Estado controlava os setores estratégicos: grandes empresas, indústria pesada, transportes, sistema bancário, comércio externo. Em fins de 1923, como observa Cohen, "estabelecera-se na Rússia Soviética um dos primeiros sistemas mistos da economia moderna" (p. 149).

A NEP era, sem dúvida, uma nova política, muito mais do que apenas "econômica". Mediante o afrouxamento dos controles econômicos, sobretudo no campo, dava uma trégua aos camponeses, desesperados e revoltados com as requisições forçadas e com as políticas coletivizantes do Comunismo de Guerra. Neste sentido, foi uma política de apaziguamento com o campesinato. Com a sua franqueza habitual, Lenin a apresentou como um "recuo" (p. 157). Assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político.

A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.

O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial (p. 188).

A pequena economia privada prosperava. Praticamente toda a produção agrícola estava sob controle camponês; 28% dos manufaturados e de 50% a 75% dos bens de consumo básico, eram produzidos por milhões de artesãos. O comércio estava, essencialmente, em mãos dos pequenos negociantes. Apesar das empresas estatais controlarem os centros dinâmicos da economia, mais de 80% da população "vivia e trabalhava sem estar sujeita ao controle do Partido Comunista ou do Estado" (ps. 301-302).

Os revolucionários reagiam ambiguamente à situação: satisfeitos com os resultados imediatos e com o afastamento dos perigos da fome e da revolta social, mas intranqüilos com a força ascendente da pequena economia privada. Afinal, a NEP era um triunfo dos bolcheviques ou dos "pequenos burgueses" em ascensão? Um triunfo da revolução ou da contra-revolução? Quem avançava, quem recuava? Mas, afinal, para que se fizera a revolução? Para isso tanto sacrifício? E o socialismo? E o comunismo? Como emancipar de fato a União Soviética do mercado internacional capitalista? Como fazer da URSS uma sociedade próspera e poderosa? Não se necessitava uma indústria pesada? Não era esta uma condição indispensável para um desenvolvimento econômico-social auto-sustentado? E também para garantir a soberania da "fortaleza do socialismo mundiall"? Os bolcheviques analisavam a conjuntura internacional, previam e temiam novas guerras imperialistas e não ignoravam que setores ponderáveis no mundo capitalista defendiam "cruzadas anticomunistas" radicais.

Os bolcheviques se dividiam nestas questões. Enquanto as luzes da ribalta clareavam os rostos crispados de Trotski, Stalin, Zinoviev, Kamenev, em luta pelo comando da sociedade, a polêmica central sobre os rumos do desenvolvimento social se polarizava em torno de Nicolai Bukharin e Eugeni Preobrajenski.

Os dois tinham sido partidários do Comunismo de Guerra e eram estreitamente ligados, já tendo inclusive elaborado em conjunto um manual de marxismo de grande sucesso na época: ABC do Comunismo. Mas viriam se tornar expoentes de propostas diversas.

Preobrajenski encarnaria a preocupação pelo desenvolvimento máximo das forças produtivas, pela construção prioritária de uma indústria de base. Para tal objetivo, fazia-se necessária uma "punção" no campesinato. Assim como o capitalismo passara por uma fase de "acumulação primitiva", o socialismo teria que obter os recursos para decolar. A Rússia revolucionária não podia contar com capitais internacionais. Restava-lhe como reserva, grande e inexplorada, o universo camponês. As teses de Preobrajenski eram relativamente cautelosas na previsão dos ritmos e da intensidade da intervenção sobre os camponeses, mas, certamente, tal política corresponderia ao abandono da NEP.

Bukharin trabalhou em sentido oposto. Defendia que a NEP deveria ser aprofundada e consolidada. Assim, deixaria de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes.

Tratava-se de mexer significativamente no núcleo do universo ideológico bolchevique.

A viga-mestra do pensamento de Bukharin é a concepção da smychka, "colaboração na sociedade" (p. 230), ou, em outras palavras, aliança entre operários e camponeses. Esta aliança deveria ser mantida a qualquer preço: o poder revolucionário é proletário, dizia Bukharin, mas quem o sustenta são os mujiques.

Para garantir a industrialização, o financiamento viria dos lucros da indústria estatal, convidada a aumentar sua produtividade; do imposto de renda, que recairia prioritariamente sobre os camponeses mais abastados e os negociantes privados, da poupança voluntária, estimulada pela implementação de vários mecanismos.

Bukharin denunciava energicamente o emprego da violência nos métodos de coletivização no campo. Os camponeses deveriam ser persuadidos ao processo coletivo de produção por um longo e paciente trabalho de esclarecimento (p. 107). A forma intermediária definida entre a propriedade individual e a coletiva era a cooperativa, da qual, lenta e livremente, os camponeses iriam "ascender" para as formas coletivas de organização do trabalho.

Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias (p. 165). Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética: "Nossa economia existe para o consumidor, não o consumidor para a economia. O que faz a Nova Economia diferir da antiga é o fato de tomar como padrão as necessidades das massas" (P. 200).

A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas (p. 186), preservando interesses dos diversos setores sociais (p. 267), a paz civil, a legalidade, a moderação nos ritmos, a tolerância e a persuasão (p. 235).

A smychka tinha igualmente uma dimensão internacional. De fato, com o "adiamento" da revolução no Ocidente capitalista, os bolcheviques, desde o início dos anos 20, passaram a pensar na possibilidade de uma aliança da Revolução Russa com os povos coloniais. Lenin e o indiano Roy protagonizaram o primeiro grande debate sobre questão no 2º Congresso da Internacional Comunista.

Bukharin, desdobrando a reflexão, passará a falar do "campesinato mundial". A relação entre camponeses e operários, existente na URSS, refletia um fenômeno mundial, e era preciso fazer do poder soviético um defensor dos povos oprimidos e colonizados, da classe camponesa, da pequeno-burguesia (p. 174-175). Da mesma forma, as nações não russas deveriam receber toda consideração já que representavam, entre outras razões uma "ponte com os povos do Oriente" (p. 181).

Bukharin tinha críticas contundentes à alternativa defendida por Preobrajenski. Ela causaria um estatismo repressivo generalizado e sufocante. A supercentralização e a superburocratização desembocariam na "má administração organizada" (p. 36 1). Na melhor das hipóteses, propiciaria um ritmo máximo de crescimento em determinados setores, mas à custa de demandas da sociedade, da aliança operário-camponesa e da estabilidade do poder soviético. E desembocaria certamente no Estado-Leviatã, voraz e liberticida.

As novas concepções de Bukharin - sobre a aliança operário-camponesa como perspectiva estratégica e não como um expediente tático ou recuo - a idéia "evolucionária" de construção do socialismo -, o projeto de atingir o socialismo mediante o mercado controlado assim como suas propostas concretas sobre o desdobramento da NEP, conheceriam momentos de glória entre 1925 e 1927, sendo consagrados no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1927.

Neste período Bukharin é reconhecido como o teórico e principal formulador da NEP. Articula-se num tandem imbatível com Stalin (Bukharin formula e Stalin organiza) e destrói as oposições agrupadas em torno de Trotsk, Zinoviev e Kamenev.

Entretanto, já desde meados de 1927, acumulavam-se problemas para a NEP. Não se confirmavam as previsões estatais sobre os montantes de grãos para exportação e abastecimento das cidades. Os camponeses, descontentes por não encontrarem no mercado as manufaturas necessárias, simplesmente não escoavam sua produção. Estocavam seus excedentes e começaram, inclusive, em certas regiões, a diminuir a área semeada. Noutras palavras, valiam-se da liberdade de comércio, inscrita na NEP. Assim, configuravam-se tensões significativas, entre Estado e camponeses.

Os problemas foram apenas aflorados no XV Congresso, já que a fração Bukharin-Stalin interessava-se mais em varrer a oposição do mapa do que em discutir a tempestade iminente.

Mas eram contradições demasiadas para ficar embaixo do tapete. Assim, em janeiro de 1928, o Bureau Político do PCUS, a mais alta instância dirigente do país, adota "medidas extraordinárias" para obrigar os camponeses a entregar os grãos de que o Estado necessitava. Voltava, portanto, a política das requisições forçadas, odiada pelos camponeses e formalmente rejeitada pela NEP.

Em fins de 1929, encerrando uma política de vaivém, de zigue-zagues estonteantes, que refletiam as hesitações do partido e, principalmente, a resistência de Bukharin e seus aliados (A. Rykov, chefe do Governo, e M. Tomski, presidente dos sindicatos russos), o Estado soviético e os comunistas caminharam para a decisão da coletivização à força, para a expropriação dos camponeses privados, ou seja, para a destruição da aliança operário-camponesa e para o abandono da NEP.

Doravante, o embate seria polarizado por Bukharin, de um lado, e por Stalin, de outro. As concepções e propostas de Preobrajenski, acerca da acumulação socialista primitiva, seriam retomadas por Stalin em escala alucinante - "caricatural", como diria Trotsk. Por ironia sinistra, o arquiinimigo de Trotski se tornava adepto da perspectiva da industrialização, para cuja implementação contaria com inúmeros ex-aliados do seu inimigo. Alguns, como o próprio Preobrajenski, seriam trazidos do exílio interno, em que se encontravam, para ajudar na execução dos famosos Planos Qüinqüenais.

Mesmo em desgraça, Bukharin ainda travará batalhas de retaguarda até ser expulso do PCUS, preso, condenado e assassinado (1937-1938). A rigor, lutará até o fim, transformando seu julgamento num derradeiro libelo contra o sistema triunfante e legando, com sua mulher antes de morrer, uma carta que, mais tarde, será divulgada.

A recuperação da trajetória de Bukharin, realizada brilhantemente por Cohen, até 1927, deixa em parte a desejar, quando o autor trata da luta entre Stalin e Bukharin, de 1927 a 1929, e, sobretudo, do período subseqüente até a morte do dirigente comunista.

A meu ver, não se esclareceram as razões políticas do triunfo de Stalin, nem, muito menos, os fundamentos históricos e sociais da derrota da linha de Bukharin.

Em certos momentos, o autor é seduzido pela idéia, tão própria à historiografia trotskista, de que Stalin venceu porque soube dominar a máquina partidária. Nesta linha de argumentos, a estrutura orgânica se ergue como um espectro com vida própria, insolitamente despolitizado e que tritura as oposições de modo inapelável. Stalin é satanizado e, como um monstro de astúcia e frieza, de sabedoria incontestável, desembaraça-se de inimigos e ex-aliados. Um autêntico gênio do mal.

Porém, felizmente, o próprio autor reconhece que não "se pode exagerar o poder organizativo de Stalin em 19288" (p. 368). De outro lado, também reconhece que "era claramente perceptível que os grupos de opinião mais fortes do partido se mostravam cada vez menos pacientes em relação às prédicas cautelosas (de Bukharin) e cada vez mais receptivos ao culto (... ) à tradição heróica do bolchevismo" (p. 371).

Aqui o autor apenas aflora um fator crucial da derrota de Bukharin. Trata-se do universo ideológico dos bolcheviques, aliás, tributário em grande medida das tradições social-democratas anteriores à Grande Guerra.

Bukharin, apesar de suas propostas inovadoras, pertence a este universo. Dele fazem parte idéias messiânicas sobre a revolução, a classe operária e o partido de vanguarda (necessariamente único), desvalorização histórica e estrutural do papel dos camponeses na revolução, a concepção cientificista-produtivista da história e do desenvolvimento social. Com tal universo Bukharin não rompeu e nem teve, jamais, este propósito.

Quando Bukharin, entre 1927 e 1929, tenta se insurgir contra Stalin, encontra-se preso nas teias destas concepções e valores políticos. Na verdade, também ele havia cultivado atitudes e políticas autoritárias (ps. 230, 270 e 299). Também ele havia sido impiedoso com seus adversários políticos de fora e de dentro do Partido Comunista. Não realizam uma reflexão autocrítica efetiva, acerca das suas concepções, no período do Comunismo de Guerra, marcadamente catastróficas, obreiristas, autoritárias e messiânicas. E havia consentido recuos em 1925-1926 que iriam fortalecer os partidárias dos planos centralizados e superindustrializantes. Daí sua impressionante timidez em recorrer ao conjunto do partido e à sociedade, se deixando encurralar no interior do Bureau Político. Daí suas humilhantes e sucessivas retratações (ps. 378, 394 e 399) que enfraqueceram, Progressivamente, suas chances de apresentar uma alternativa ampla ao stalinismo.

Este retrospecto não tenciona desmerecer ou minimizar o papel de Bukharin, mas compreender algumas razões da sua derrota para Stalin. Este soube, de fato, encamar como ninguém a consciência média bolchevique, os valores hegemônicos no interior do partido, os frutos de um tempo duro de terríveis enfrentamentos. Por mais astuto e endemoninhado que fosse, com rabo, chifres e pés invertidos, Stalin não venceria esta formidável batalha política, se não contasse com maioria ampla do partido a seu favor.

O socialismo em um só país (defendido inclusive por Bukharin que, por sinal, foi o primeiro a falar nisto, como informa o próprio Cohen), a mitologia do partido único, o messianismo obreirista e a correspondente subestimação das outras classes, principalmente o campesinato, São valores fundamentais entre outros já referidos, enraizados na tradição bolchevique.

Bukharin formulou políticas e concepções que, uma vez aprofundadas, provavelmente, poriam em xeque tais valores. Mas não foi capaz, ou não teve ocasião histórica, de empreender tamanha tarefa. E se o fizesse é praticamente certo que seria derrotado de maneira ainda mais inapelável.

Entretanto, teve o mérito de representar uma alternativa ao modelo stalinista. E Stephen Cohen teve o grande mérito de ser um dos historiadores que resgatou do esquecimento esta história. Contribuiu, deste modo, para esclarecer as divergências reais da polêmica que sacudiu a URSS nos anos 20, como para desvendar os mitos que reservam um lugar central à polêmica entre Stalin e Trotski, obscurecendo o parentesco fundamental entre stalinismo e trotskismo.

* Daniel Aarão Reis é historiador

Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991

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