quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Enrico Berlinguer, Carlos Nelson Coutinho, e o socialismo democrático



"É preciso combater não só os que negam a democracia no socialismo, mas também aqueles que, em nome da democracia, abandonam o socialismo." (Carlos Nelson Coutinho)

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, é um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país. Foi o principal responsável pela divulgação da obra de Gramsci e de Luckacs aqui no Brasil, além de ter sido um dos fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade. Foi também um dos primeiros intelectuais marxistas em nosso país, a defender a necessidade urgente de conciliar socialismo e democracia. Escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".

"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.

Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.

Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.

Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.

Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."

(Carlos Nelson Coutinho; em entrevista a revista Teoria e Debate nº 51)


Coutinho defende a democracia como caminho para o socialismo, ou seja, afirma ser necessária a existencia da democracia em uma futura sociedade socialista, assim como também afirma que o próprio socialismo precisa ser construido pela via democrática, através de uma revolução processual fundamentada no que ele chama de "reformismo revolucionário". Isso é plenamente possível graças a 'socialização da política', ocorrida em virtude das vitórias obtidas pelo movimento operário e popular ao longo dos séculos XIX e XX. Inclusive já na segunda metade do século XIX, Karl Marx havia admitido a possibilidade de conquista pacífica do poder pelo proletariado, justamente nos países mais avançados em emancipação política, via voto*.

* Em seu discurso no Congresso de Haia, realizado em 1872, Marx afirmou que nos EUA, na Grã Bretanha, e talvez na Holanda, os trabalhadores podem atingir suas metas por meios pacíficos. A possibilidade da transição pacífica, segundo Marx, dependeria das diferentes correlações de força existentes no interior de cada país, do grau de consolidação das instituições e também da resistência oferecida pelas classes dominantes às transformações sociais. Marx sublinhou igualmente, que será a classe operária de cada país que deverá escolher os meios a serem utilizados. Acrescentou, entretanto, que na maioria dos países europeus será necessário o emprego da violência para a realização das transformações revolucionárias.

Sobre essa possibilidade de transição pacifica ao socialismo defendida por Marx, eu recomendo que vejam:

Karl Marx; "Discurso de Marx sobre o Congresso de Haia".

Karl Marx; "Carta de Marx a Hyndman de 8 de dezembro de 1880".

Karl Marx; "Entrevista de K. Marx ao representante do Jornal The World de 18 de julho de 1881".



"Enquanto existir capitalismo, o socialismo estará na agenda política. O capitalismo é uma formação social extremamente contraditória, que gera exclusão e desigualdade; e, nessa medida, nós, marxistas, sabemos que a alternativa ao capitalismo é o socialismo. Marx, no início dos anos 1870, dizia, referindo-se à fixação legal da jornada de trabalho, que esta tinha sido a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital, porque introduzira regulação social onde só havia mercado. A partir de um certo momento, portanto, revelaram-se possíveis importantes reformas no interior da ordem capitalista alterando a lógica do capital, ainda que não a derrotando plenamente. A social-democracia do início do século XX foi lúcida ao se dar conta de que era possível empreender reformas, e empenhou-se neste sentido. O conjunto dessas reformas configurou o Welfare State, a maior vitória da classe operária no quadro da ordem capitalista.

Mas a social-democracia não foi coerente com sua própria proposta reformista. A lógica da cidadania, da luta pelas reformas deveria levar ao socialismo. Era inevitável que seu desenvolvimento se chocasse com a lógica do capital. Quando isso se colocou, a social-democracia preferiu gerir o capitalismo a aprofundar o processo de reforma. A social-democracia foi pouco reformista. É aqui que entra minha idéia (que de resto não é minha, é do André Gorz no final dos anos 60, quando ainda era marxista) do reformismo revolucionário. Devemos lutar por reformas que entrem em contradição com a lógica do capital e possam levar à sua superação. Isso tem a ver com a configuração das sociedades ocidentais, complexas, que nos impõem uma estratégia de guerra de posição, em que se ganha e se perde, há espaços que são ocupados e depois reconquistados pelo adversário de classe.

Vivemos um período em que temos sofrido derrotas políticas importantes, mas isto não nos deve afastar da idéia de que a estratégia possível ainda é da guerra de posição e do reformismo revolucionário. A redução da jornada de trabalho foi uma vitória da economia política do trabalho, como dizia Marx; mas, num primeiro momento, revelou que não era incompatível com o domínio do capital. Mas, hoje, uma nova redução da jornada de trabalho é muito importante para entrarmos em contradição com a lógica do capital e, eventualmente, até o superarmos. Deu-se no interior do capitalismo um aumento da produtividade do trabalho de tal nível que hoje é possível reduzir drasticamente a jornada de trabalho mantendo-se os atuais níveis de produção.

Mas isso não acontece; em vez de uma redução da jornada de trabalho, temos um aumento do desemprego porque há uma contradição entre as forças produtivas atuais e as relações de produção capitalistas. Esta contradição, uma velha lei formulada por Marx, que parecia meio abstrata, manifesta-se hoje no chamado desemprego estrutural. O único modo de resolver este problema em favor do interesse coletivo é a redução da jornada de trabalho, com o que todos poderiam trabalhar e trabalhar menos. Redução que, aliás, é para Marx o pressuposto do comunismo. A redução da jornada de trabalho nos liga a um processo de transformação global da sociedade, inclusive à fundação de um novo tipo de sociabilidade, baseado não mais na produtividade do trabalho visando ao lucro individual, mas no desenvolvimento da criatividade humana que poderá ser desenvolvida no tempo livre possibilitado pela redução da jornada de trabalho. Essa redução, assim, é claramente uma reforma revolucionária."

(Carlos Nelson Coutinho; em entrevista a revista Teoria e Debate nº 51)


A defesa da democracia como valor universal realizada por Carlos Nelson Coutinho, é influenciada pelas posições do secretário geral do Partido Comunista Italiano, o marxista Enrico Berlinguer, que uma década antes de Mikhail Gorbatchev apresentar as propostas de liberalização do regime soviético nos campos econômico (a perestroika) e ideológico (a glasnost), lançou o desafio da necessidade urgente da alteração dos rumos seguidos até então pelas sociedades socialistas, os chamados países do "socialismo real". Um desafio centrado na idéia de que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito pelas liberdades democráticas, individual e coletivamente.

Quando ocorreu a invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas em 1979, Berlinguer criticou severamente o ato soviético como uma ação tipicamente imperialista, responsável por colocar no mesmo plano os Estados Unidos e a União Soviética.

"[...] É bem clara, e de todo nítida, nossa posição sobre os acontecimentos do Afeganistão. Reprovamos imediatamente a intervenção militar soviética, pedindo que se desse um fim a ela. Inspiramo-nos, assim, antes de tudo, numa posição de princípio que sempre nos levou a condenar toda violação dos direitos dos povos à independência nacional e à livre escolha do próprio desenvolvimento.

Várias vezes também, neste pós-guerra e nos últimos anos, este direito foi pisoteado pelos países capitalistas, em particular pelos EUA. E sempre se levantou nossa voz de reprovação e de condenação. Não podem sustentar o mesmo, decerto, nem todas as forças políticas presentes nesta Assembléia. O fato de que, no Afeganistão, a intervenção tenha sido realizada por um país socialista, dirigido por um partido comunista, não nos afasta desta nossa coerente linha de princípio.

Nossa posição foi tanto mais resoluta porque a intervenção soviética inseriu-se numa situação internacional já plena de tensões (no Golfo Pérsico, no Oriente Médio, no Sudeste asiático, em várias zonas da África, nas próprias relações Leste-Oeste), provocando mais deterioração.[...]" (Do discurso no Parlamento europeu, em Estrasburgo, 16 jan. 1980. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Riaprire la via del dialogo". In: Tatò, Antonio (Org.). Berlinguer. Attualità e futuro. Roma: L'Unità, 1989, p. 40-3.)


Enrico Berlinguer também condenou o golpe de Estado na Polônia, ocorrido no final de 1981, golpe que levou o general Wojcieck Jaruzelski ao poder e a repressão contra o sindicato Solidariedade.

"Na madrugada de 12 para 13 de dezembro de 1981, na passagem de um sábado para um domingo, o general Wojcieck Jaruzelski encabeça um golpe de Estado na Polônia. Imediatamente, as principais lideranças do sindicato Solidariedade são detidas e o estado de sítio proclamado. Ao mesmo tempo, o partido comunista é colocado de lado e o governo civil substituído por uma junta militar autoproclamada responsável pela "salvação nacional".

Com isso, todas as esperanças de que a democracia e a liberdade começavam a ressurgir na Polônia, em virtude do avanço do sindicato chefiado por Lech Walesa, vêm por água abaixo. Mais uma vez, Berlinguer demonstra todo o seu senso de oportunidade. Na noite da terça-feira, dia 15, indagado por vários jornalistas em um programa de televisão, o secretário-geral do PCI explicita a condenação ao golpe de Estado polonês, afirmando de maneira inesperada que tal fato teria demonstrado a exaustão da capacidade propulsora contida na Revolução Russa de 1917.

Diante desta virtuosa heresia, não tardaram a surgir os protestos dos principais representantes do conservadorismo comunista. Para além das tradicionais acusações por parte do PC soviético e dos PCs do Leste europeu, ganha destaque a crítica feita pelo único membro da Direção do PCI que discordou da declaração de Berlinguer. Famoso por ser um dos dirigentes mais próximos de Moscou, Armando Cossutta declara que, com seu discurso na TV, Berlinguer levara a cabo muito mais que uma svolta (virada), tendo feito de fato um strappo (ruptura, "racha") não apenas com a União Soviética, mas também com as próprias raízes do partido de Gramsci e Togliatti, isto é, com a tradição do comunismo italiano. " (Marco Mondaini)


"[...] A direção do PCI reuniu-se depois de tomar conhecimento dos graves fatos verificados na madrugada entre sábado e domingo na Polônia, e disse — penso — o que deveria ser dito imediatamente. Ela expressou nossa firme condenação do estado de sítio proclamado na Polônia e a condenação das prisões e da supressão das liberdades democráticas e sindicais. Pediu também que os detidos sejam soltos, que as liberdades sejam restituídas e que se possa reabrir a via do diálogo entre os diversos componentes da sociedade polonesa, para encontrar uma solução política — ou seja, não baseada na força e na repressão — para a grave crise que abalou e até agora está abalando a Polônia.

Se examinarmos o desenvolvimento dos acontecimentos poloneses, pensamos que sua origem principal está nos graves erros de direção econômica e de método de gestão do poder que foram cometidos pelo partido comunista no governo e que provocaram uma ruptura entre o poder e as grandes massas da cidadania, antes de tudo da classe operária.

Não se pode negar, num exame objetivo, que existiram impulsos extremistas de vários matizes no próprio partido e nas organizações sindicais. Este é um dado objetivo, que não invalida absolutamente nossa tomada de posição, que me parece de todo nítida e clara. A reflexão deve prosseguir até o fim, e o artigo do L'Unità, a que o senhor se referiu, constitui uma contribuição importante. A meu ver, pode-se dizer em linhas gerais — e talvez possamos retornar a este tema — que o que aconteceu na Polônia nos leva a considerar que, efetivamente, está se exaurindo a capacidade propulsora de renovação da sociedade ou, pelo menos, de algumas sociedades que foram criadas no Leste europeu.

Falo de um impulso propulsor que se manifestou por um longo período, que tem sua data de início na revolução socialista de Outubro, o maior evento revolucionário da nossa época, e que deu lugar depois a uma série de eventos e de lutas pela emancipação e também a uma série de conquistas.

Hoje, chegamos a um ponto em que aquela fase se conclui, e, para fazer com que também o socialismo que se realizou nos países do Leste possa conhecer uma nova era de renovação e de desenvolvimento democrático, são necessárias duas coisas fundamentais: antes de tudo, é necessário que prossiga o processo de distensão, porque é claro que a exacerbação das tensões internacionais, a corrida armamentista levam ao enrijecimento dos vários regimes, inclusive daqueles regimes; além disso, é necessário que avance um novo socialismo no Ocidente, na Europa Ocidental, o qual esteja indissociavelmente ligado aos valores e aos princípios da liberdade e da democracia, e neles se baseie. Trata-se, em substância, da política, da estratégia, da inspiração fundamental do nosso partido, que recebem daqueles fatos uma nova confirmação. [...]

Pensamos que os ensinamentos fundamentais transmitidos especialmente por Marx, bem como algumas lições de Lenin conservam sua validade, mas, de outra parte, há também todo um patrimônio e toda uma parte deste ensinamento que já caducaram, que devem ser abandonados e, de resto, foram por nós abandonados com os desenvolvimentos dados à nossa elaboração, que se concentra num tema central da obra de Lenin. O tema no qual nos concentramos é o da via para o socialismo e dos modos e formas da construção socialista em sociedades economicamente desenvolvidas e com tradições democráticas, como são as sociedades do Ocidente europeu.

É claro que a exploração de vias para o socialismo, nesta parte da Europa e do mundo, requer soluções totalmente originais em relação às que foram implementadas na União Soviética e depois, aos poucos, nos outros países do Leste, tanto da Europa quanto da Ásia. Deste ponto de vista, consideramos a experiência histórica do movimento socialista, no seu conjunto, em suas duas fases fundamentais: a social-democrata e a dos países onde o socialismo foi implementado sob a direção de partidos comunistas no Leste europeu.

Cada uma destas experiências deu sua contribuição para o avanço do movimento operário, mas ambas devem ser superadas criticamente com novas fórmulas, com novas soluções, isto é, com o que chamamos, precisamente, de terceira via em relação às vias tradicionais da social-democracia e dos modelos do Leste europeu. Trata-se de uma busca na qual se acham empenhados não apenas alguns partidos comunistas, mas também algumas social-democracias ou, pelo menos, alguns setores da social-democracia, nos quais este mesmo tema vem sendo discutido e aprofundado.[...]

Pedimos, e continuamos a pedir, o retorno das liberdades democráticas e sindicais na Polônia, a libertação dos detidos. Isto não é solidariedade? Não podemos seguir Rossana Rossanda em todas as suas posições, mesmo porque, há alguns anos, ela nos pedia para sermos solidários cem por cento com a revolução cultural chinesa [...], a qual depois se revelou um desastre nacional para a China. Então, como vê, quando se trata dos conselhos de Rossana Rossanda, reflitamos um pouco antes de acolhê-los. [...]

O senhor não quer a reflexão essencial, o senhor quer as definições drásticas, as formulazinhas. Eu propus o tema que me parece o mais essencial de todos, quando digo que está superada toda uma fase do movimento para o socialismo que teve sua origem na Revolução de Outubro. Trata-se de abrir outra fase, e de abri-la, antes de tudo, no Ocidente capitalista. Esta nova fase é a que poderá ajudar especialmente até mesmo os próprios regimes do Leste a seguirem o rumo de uma efetiva democratização da sua vida política. Parece-me que este é verdadeiramente o tema essencial que hoje se propõe às forças operárias, às forças democráticas do mundo ocidental e, portanto, do nosso país." (Da entrevista coletiva na Rai Uno, 15 dez. 1981. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Dopo i fatti di Polonia". In: Tatò, Antonio (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 270-85. )


Essa "heresia virtuosa" de Enrico Berlinguer me inspira a lutar contra os graves erros do modelo bolchevique(o chamado marxismo-leninismo), que originaram a bestialidade stalinista e o finado "socialismo real". Assim como Berlinguer e Carlos Nelson Coutinho, eu defendo a democracia como valor universal, defendo o reformismo revolucionário e afirmo que sem democracia, não pode existir socialismo.

Sou defensor incondicional do socialismo democrático!

"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)


A democracia como valor universal

Enrico Berlinguer

Tradução: Marco Mondaini

Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.

Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.

Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.

O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.

Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.

No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.

O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.

A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.

Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.

Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.

Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.

Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.


Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L'Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.

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