quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Socialismo com liberdade e democracia

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Em 1918, a revolucionária marxista Rosa Luxemburgo escreveu "A Revolução Russa", onde criticava os desvios autoritários que o bolchevismo promovia e alertava para suas consequencias. Resgatando o melhor do pensamento marxista, Rosa Luxemburgo deixou claro que ditadura do proletariado não é ausencia de democracia, mas sim a forma de imprementa-la em beneficio da classe trabalhadora, impedindo uma contra-revolução burguesa. Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

Socialismo não é ditadura de partido único, não é totalitarismo, muito menos terrorismo de Estado. Como disse o filósofo marxista italiano Pietro Ingrao: "Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário."(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])

Está certo o filósofo marxista Ruy Fausto, ao afirmar que: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (EM TORNO DA PRÉ-HISTÓRIA INTELECTUAL DO TOTALITARISMO IGUALITARISTA)

Os bolcheviques estabeleceram a ditadura do partido comunista, um regime pré-totalitario que usando do terror desumano plantou as sementes que originaram o stalinismo, que promoveu um terror ainda mais desumano, igualando-se ao nazi-fascismo. A esquerda não pode continuar se fundamentando segundo essa tradição.

E mais, é preciso ter consciência das mudanças ocorridas desde aquela época, basta observar o fato dos trabalhadores terem conquistado cidadania plena, através da legalização dos partidos operários e dos sindicatos, da conquista do pleno direito de greve, da jornada de trabalho de 8 horas diárias, de férias remuneradas de trinta dias, do seguro desemprego, de salários decentes e condições de trabalho humanitarias, do voto secreto e universal, etc. Até mesmo as mulheres conquistaram cidadania, não somente através da conquista do direito de voto, mas também com a conquista da participação cada vez maior no mercado de trabalho, licença maternidade, legalização do divórcio, etc. Portanto é loucura ainda hoje falar em ditadura do proletariado, uma vez que o capitalismo se democratizou em virtude dessas conquistas que os trabalhadores, tanto homens como mulheres, obtiveram em virtude de sua organização e luta. A democracia é um valor universal, e a refundação do socialismo passa pelo reconhecimento dessa questão.

O historiador Jacob Gorender, afirmou praticamente o mesmo, em entrevista publicada na Teoria e Debate nº43: "o conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele".O cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país, afirmou que "ditadura do proletariado foi um dos termos menos felizes de Marx", o que concordo plenamente. A democracia é um valor universal, a esquerda socialista precisa se conscientizar e assumir essa verdade.

"O melhor terreno para mudanças consistentes é o terreno da democracia. Em condições autoritárias, o objetivo fundamental da mudança passa a ser a própria democracia. Outras demandas, a luta pela igualdade social, por exemplo, ficam obscurecidas, subordinadas. Conquistada a democracia, trata-se de aprofunda-la, basicamente, em dois planos: no plano institucional, de aperfeiçoamento do jogo democrático, e no plano da conquista da igualdade, do progressivo desenvolvimento social em todos os níveis. A democracia é um valor estratégico, universal, meio e fim." (José Genoíno, deputado federal do PT/SP)

O socialismo precisa ser refundado, tendo por base a defesa da democracia como valor universal. A história nos mostrou que igualdade sem democracia é uma miragem. Sempre que a liberdade é sacrificada, privilégios velhos e novos ganham força. A igualdade é irmã gemêa da liberdade.

Homens como Alexander Dubcek, Salvador Allende, Enrico Berlinguer, Chico Mendes, e tantos outros, enriqueceram o campo da esquerda ao defender o socialismo com liberdade e democracia.

A refundação do socialismo exije o abandono de toda herança oriunda da tradição bolchevique, assim como a revisão do próprio pensamento marxista. A esquerda não pode ser dogmatica, até porque a história mostrou que é evidente a existência de inúmeros equívocos no próprio pensamento de Marx e de Engels, como inclusive demonstra o historiador Jacob Gorender em "Marxismo sem utopia".

"Marx era um determinista utópico. Queria algo que a realidade não confirmou. Previu que, com o avanço das forças produtivas, a humanidade gozaria de fartura plena. A produtividade não teria limites. Não é verdade. Apesar dos avanços tecnológicos, há o limite ecológico para a produtividade. Não se pode crescer a ponto de deteriorar o ambiente em que o homem vive. Isso Marx não pensou. Outra previsão equivocada foi a do desaparecimento do Estado. Como não haveria mais classes sociais na evolução marxista, então o Estado seria desnecessário. Haveria uma espécie de autogoverno das comunidades. Impossível. As sociedades necessitam do Estado, até porque há prioridades a definir. Que meios de transportes usar? Qual a produção industrial? Serviços de saúde, educação, quem vai decidir sobre isso? Só pode ser o Estado, democrático e de direito." (Jacob Gorender; em entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 19/02/2006)

Os socialistas defendiam até recentemente o fim do capitalismo, o que significava a abolição da propriedade privada dos meios de produção, distribuição e troca, com a estatização dessa propriedade em nome de sua socialização e a substituição do mercado por uma economia planificada. Entretanto a fracassada experiência do chamado "socialismo real", assim como o sucesso incontestável do "socialismo de mercado" na China e no Vietnã, demonstram claramente que a esquerda precisa repensar essa questão. Não que os socialistas devam renunciar a luta pelo fim do capitalismo e a favor da construção de uma sociedade mais humana, justa e igualitária. Mas é evidente que a propriedade privada e o mercado não podem ser abolidos, ao menos não da noite para o dia. Será um processo longo, onde o socialismo irá conviver com o mercado e com a propriedade privada por um bom tempo. É preciso seguir o exemplo bem sucedido do "socialismo de mercado", tanto que até mesmo os cubanos, apesar de faze-lo de forma extremamente timida, começam a promover reformas nesse sentido. Na Venezuela, apesar de todo discurso socialista do presidente Hugo Chávez, também não se pensa em estatizar toda propriedade dos meios de produção, distribuição e troca, mas apenas aqueles setores que são considerados estratégicos.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)

Até mesmo o historiador Eric Hobsbawn, um dos maiores nomes do marxismo na Europa, reconhece a necessidade da existência do mercado no socialismo.

"Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. (...) A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado." (Eric Hobsbawn)

Como socialistas precisamos estar abertos aos novos paradigmas que a história nos coloca, abrindo mão do dogmatismo que havia transformado a filosofia marxista em uma espécie de religião. Precisamos ter coragem para refundar o socialismo, tendo por base uma ética humanista e uma profunda consciência democrática, pois afinal sabemos que sem liberdade, não pode existir socialismo.

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