quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A ORIGEM DA CRISE DO SOCIALISMO

O Muro de Berlim caiu em 1989, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas(URSS) foi dissolvida em dezembro de 1991. Portanto faz quase 20 anos que a primeira experiência mundial de construção do socialismo chegou ao fim, mas até hoje os comunistas não enxergam a culpa de Lenin e dos bolcheviques na origem do stalinismo.

E pior, não são apenas os comunistas, pois mesmo aqueles socialistas que reconhecem que ocorreram erros no processo revolucionário já no seu nascedouro, recusam ir mais fundo e realizar uma verdadeira autocritica.

O fracasso da primeira experiência de construção do socialismo se deveu ao stalinismo, e felizmente praticamente toda a esquerda reconhece isso. Entretanto ao não reconhecer a culpa do bolchevismo, a esquerda não consegue superar os graves erros que deram origem ao stalinismo, e portanto não conseguem superar a crise que desde o começo dos anos 90, atinge a esquerda socialista em todo o mundo.

A crise do socialismo

A esquerda parece não ver nenhuma relação entre as concepções teórico-políticas de Lenin e toda evolução posterior das experiências socialistas na Rússia, no Leste Europeu e no mundo. Não fosse o maldito Stalin, certamente estaríamos no paraíso socialista.

Ora, ninguém pode subestimar o papel nefasto que Stalin cumpriu na história, mas atribuir a ele esta importância é, no mínimo, um simplismo que exige uma grande dose de boa vontade para convencer a nós mesmos. Stalin jamais poderia ter sido o que foi se a maioria dos comunistas na Rússia e no mundo não o tivessem apoiado entusiasticamente. E todos eram comunistas teoricamente referenciados no marxismo-leninismo (ou não?).

Mesmo aqueles que se opuseram ao stalinismo, como foi o caso de Leon Trotsky, na verdade defendiam o mesmo modelo totalitario e burocratico de socialismo. A oposição baseava-se no fato de Trotsky defender que a revolução fosse exportada para a Europa Ocidental, enquanto Stalin defendia que o socialismo deveria ser construido primeiramente na Rússia. Fora isso, era apenas um duelo de egos. Tanto é verdade que as mesmas políticas adotadas por Stalin à partir de 1928, quando estabeleceu a completa estatização da economia, com a coletivização forçada no campo e a rápida industrialização nas cidades, acompanhada pela militarização do trabalho e estatização dos sindicatos, eram as mesmas políticas que Trotsky também defendia.

"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos, a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP, propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo, recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado, subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."

(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a Revolução")


A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse.

O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado 'socialismo real', foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

Os graves erros do modelo socialista desenvolvido por Lenin

É verdade que o stalinismo teve desvios em relação às concepções leninistas. Mas o que deve ser discutido é se as concepções de Lenin eram corretas, se não permitiram o desenvolvimento desses desvios.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin.

O stalinismo portanto não foi resultado de nenhuma "contra-revolução burocratica", e sim resultado desse grave erro existente no modelo marxista-leninista.

O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois plantou as sementes que deram origem ao stalinismo, até porque se antes da revolução Lenin pregava "todo poder aos sovietes", após a revolução foi estabelecido o "todo poder ao partido comunista". E pior, os bolcheviques também promoveram crimes hediondos contra a humanidade, especialmente o chamado "terror vermelho", quando milhares foram assassinados pela Cheka(a policia política) apenas para causar terror e impedir adesões a contra-revolução. Como alguém quer construir um mundo melhor promovendo uma monstruosidade dessas??

O caráter anti-democrático do bolchevismo pode ser constatado nas palavras de Leon Trotsky, um dos principais revolucionários bolcheviques e que desde 1920 já defendia a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos.

“A verdade é que, em regime socialista, não haverá aparelho de coerção, não haverá Estado. O Estado se dissolverá na comuna de produção e de consumo. Entretanto, o caminho do socialismo passa pela tensão mais alta da estatização. E é exatamente este período que atravessamos. Assim como um lampião, antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, a forma mais impiedosa de governo que existe, um governo que envolve, de maneira autoritária, a vida de todos os cidadãos. É essa bagatela, esse pequeno grau na história que [...] o menchevismo não viu, e foi isto o que lhe fez tropeçar”

(Leon Trotsky; "Terrorismo e Comunismo")


Ao afirmar que a ditadura do proletariado é a forma mais impiedosa de governo que existe, Trotsky está legitimando os crimes hediondos do "terror vermelho" e pior, dando sinal verde para o terror ainda mais criminoso e aberrante da era stalinista, até porque para voltar à imagem, e se o lampião em vez de se apagar não só continuasse aceso mas pusesse fogo no mundo? Foi o que aconteceu com o stalinismo. Não é portanto por coincidencia que enquanto comandante do Exército Vermelho, Trotsky ordenou a repressão brutal contra o levante socialista do soviet de Kronstadt. As diferenças entre Trotsky e Stalin são minimas, mas ainda hoje tem comunista babaca que acha que Trotsky representa um anti-stalinismo.

Ao contrário de Lenin, Trotsky e dos bolcheviques, Rosa Luxemburgo deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos que seja obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.

"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Os comunistas e até mesmo os socialistas, insistem em se fazer de cegos para não enxergar os crimes promovidos durante a fase anterior ao stalinismo, crimes que também precisam ser condenados. Em "Somos todos pós-modernos?", Frei Betto pergunta "quem diria que a revolução russa terminaria em gulags?" Oras, quem conhece a história da Revolução Russa, sabe muito bem que os gulags surgiram por iniciativa de Lenin, ao autorizar a criação dos primeiros campos de concentação na Europa já em 1918, para aqueles que não compartilhavam suas idéias.

"Os sovietes funcionaram com alguma liberdade só até junho de 1918. Os jornais socialistas de oposição não duram muito mais do que isso. Os campos de trabalho forçado existem desde 1918-1919. Em 1918, e depois em 1920-1921, há greves importantes, reprimidas violentamente pelo regime."

(Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)


O historiador russo Dmitri Volkogonov afirma que a idéia do sistema de campos de concentração (os Gulags), e os terríves expurgos dos anos 30, são normalmente associados ao nome de Stalin, mas o verdadeiro "pai" dos campos de concentração bolcheviques, as execuções, e o terror em massa, era Lenin. Nos antecedentes do terror implantado por Lenin, se torna fácil entender os métodos inquisitoriais de Stalin, o qual era capaz de executar alguém apenas baseado em suposições. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (EM TORNO DA PRÉ-HISTÓRIA INTELECTUAL DO TOTALITARISMO IGUALITARISTA)

O regime bolchevique foi pré-totalitario pois preparou o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Portanto não basta ser anti-stalinista, a esquerda precisa ter a coragem de reconhecer seus erros, reconhecer seus crimes, e assim refundar o socialismo para que essas coisas não voltem a acontecer, e o principal, para poder retomar a ofensiva na luta contra a exploração capitalista.

Leia o texto abaixo e reflita

A INFÂNCIA DE UM CHEFE

Ruy Fausto*

Simon Sebag Montefiore que, com "A Corte do Czar Vermelho" [Cia. das Letras], espécie de análise histórico-etnológica de Stálin, havia provocado uma pequena revolução na "stalinologia" e, em certa medida, na sovietologia em geral, lança agora este "Jovem Stálin", que se ocupa da vida do "pai dos povos" até a sua participação no primeiro governo bolchevique, em novembro de 1917.

Como o livro anterior, este é o resultado de um longo trabalho: quase dez anos de investigação em 23 cidades e nove países, incluindo pesquisas em arquivos recém-abertos em Moscou e nas cidades georgianas de Tbilisi e Batumi, além da utilização de memórias, em boa parte inéditas, de contemporâneos mais ou menos obscuros.

A primeira reação diante de tal tipo de trabalho é de ceticismo. Esse mergulho na vida do tirano poderia levar a resultados históricos de alguma relevância? Na realidade, o livro é importante. Sem dúvida, pode-se dizer que ele não inova propriamente, "apenas" radicaliza o que já fora revelado pelo livro anterior e por textos de outros autores. Só que essa radicalização vai longe. Há nele três elementos, de interesse crescente.

Em primeiro lugar, para além do que já se sabia por meio de "A Corte do Czar Vermelho", o leitor descobre um Stálin com qualidades intelectuais-artísticas bem superiores às que poderia sugerir o retrato que dele faz Trótski.

O jovem Stálin não só canta bem e é um grande leitor, principalmente de literatura e história, mas é um poeta georgiano de qualidade apreciável (os poemas em tradução, que o volume traz, parecem confirmar esse julgamento).

O Stálin poeta foi incluído em antologias da poesia georgiana do início do século e, segundo Montefiore, ele é um "clássico georgiano menor". O futuro "pai dos povos" "foi admirado na Geórgia como poeta antes de ser conhecido como revolucionário".

Montefiore diz também, "en passant", que Stálin lia Platão no original grego (língua que deve ter aprendido no seminário). Ele não foi um indivíduo inculto; mesmo o epíteto de semiculto talvez seja insuficiente. Stálin foi um intelectual de estilo provinciano (não conseguiu dominar as línguas modernas fora o russo, tinha gostos muito convencionais em arte etc.). Porém, se Stálin foi mais intelectual do que se supunha, ele também foi mais bandido… Suas atividades de "expropriador" são conhecidas, principalmente o famoso ataque às "carruagens pagadoras" do Banco do Estado em Tiflis, em junho de 1907, fato noticiado com destaque pela imprensa mundial da época.

O assalto de Tiflis, planejado por Stálin, mas do qual ele provavelmente não participou de forma direta, foi executada por um grupo de homens e mulheres dirigido por Kamo, um bandido sanguinário e psicopata, totalmente fiel a Stálin. Segundo os arquivos da polícia secreta czarista, nele morreram mais ou menos 40 pessoas. Stálin se comportava como um verdadeiro chefe de bando, mesmo se só guardasse para si a glória e o poder (que sempre foram seus maiores objetivos): o dinheiro ia para os cofres da organização bolchevista.

Stálin planejou e dirigiu outras ações violentas, incluindo talvez um ato de pirataria contra um navio no mar Negro, arrancou dinheiro de comerciantes e industriais, sob ameaça de morte ou de incêndio de propriedades, e mandou matar espiões (segundo alguns, liqüidou também gente que simplesmente não lhe inspirava confiança). Assim, nas palavras do autor, "Stálin era uma rara combinação: ao mesmo tempo intelectual e assassino".

É por causa dessa dupla condição - esse é o ponto importante - que ele caiu nas boas graças de Lênin. Também aqui os fatos, em grande parte pelo menos, já eram conhecidos, mas Montefiore mostra bem o quanto Lênin apreciava Stálin, e como iria promover sua ascensão na hierarquia, depois da cisão formal do partido bolchevique (1912).

"Esse é exatamente o tipo de pessoa de que necessitamos", diz Lênin sobre Stálin, nos anos 1910, respondendo às objeções de um menchevique. Numa carta a Gorki - esta bem conhecida -, Lênin se refere a Stálin como o seu "maravilhoso georgiano". Às vésperas do quinto Congresso da Social-Democracia russa, em Londres, em abril-maio de 1907, Lênin encontra Stálin em Berlim.

Lá, eles conversam sobre a iminente operação de Tiflis (!) e sobre os meios para remeter o dinheiro. No congresso, onde, por proposta dos mencheviques, as expropriações são proibidas pelo partido, sob pena de expulsão, Lênin afirma não conhecer Stálin.

Em 1912, junto com Zinoviev, Lênin propõe que Stálin seja cooptado para o Comitê Central bolchevique. E, em 1922, assegura, com Kamenev, a nomeação de Stálin como secretário-geral do Comitê Central.

Se as coisas se passaram assim, é preciso concluir - não, como pretende o autor, que o stalinismo é simples continuação do leninismo: as diferenças entre os dois não desaparecem apesar de tudo isso - que o leninismo "preparou a cama" para o stalinismo.

Meios e fins

Lênin sempre deixou claro que não tinha maiores problemas com o uso dos meios, desde que os objetivos fossem revolucionários. E, assim, não hesitou em apelar para o banditismo como força auxiliar. E, até mais do que isso, a serviço do grupo e, depois, do partido bolchevique.

Quando se tenta idealizar "o último combate de Lênin" - a ruptura com Stálin, em 1923, e a tentativa de afastá-lo da Secretaria Geral -, é impossível não comentar: pois fora ele mesmo, Lênin, que introduzira o lobo (não propriamente entre "cordeiros", mas…).

A refletir. Quando jovem, Fidel Castro foi uma espécie de gângster, e a última biografia de Mao Tse-tung revela um personagem que tem muito a ver com o banditismo. Que o stalinismo tenha certa afinidade com o gangsterismo não é muito surpreendente nem representa, a rigor, uma informação nova, nos dias de hoje.

Mas o que, sim, deveria ser matéria de reflexão é o uso que o leninismo fez das práticas do gangsterismo. Essa atitude não foi acidental. Ela estava enraizada nessa mistura de neojacobinismo, neonarodnikismo e fria racionalidade capitalista, que é o leninismo. Os resultados, conhecemos.

Infelizmente, como os stalinistas outrora, os nossos neoleninistas preferem não enxergar o que é desagradável. A confusão teórica é o preço dessa política de avestruz.

*RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).

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