quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Socialismo e liberdade


Rage Against The Machine - Sleep Now In The Fire

O stalinismo foi um câncer, que degenerou o socialismo ao ponto de torna-lo semelhante ao nazi-fascismo.

"O stalinismo foi a maior tragédia do povo russo e de todo o povo do Leste Europeu, afora as guerras. Não podemos mais ter receio de afirmar isso. Havia um temor de que isso parecesse diminuir o mérito da resistência do povo soviético ao nazismo. Não diminui. Os vestígios de stalinismo, indícios que sejam, são nefastos, atentados a qualquer idéia de vida democrática."

(Emiliano José; em "O stalinismo e sua trágica herança")


Entretanto não podemos ser cegos para não enxergar a culpa de Lenin e dos bolcheviques no surgimento do stalinismo. Devemos nos recordar das criticas de Rosa Luxemburgo, principalmente o clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, onde Rosa criticou os desvios autoritários promovidos pelos bolcheviques, e acabou sendo profética pois previu o que viria a ser o stalinismo.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Rosa Luxemburgo deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos que seja obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.

"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Na atual sociedade capitalista, onde o poder da burguesia não se encontra localizado nos palácios, mas espalhado por toda sociedade(sindicatos, partidos, escolas, igrejas, etc), é loucura ficar fazendo pregações em favor de luta armada ou coisas afins, como faz muita gente da extrema-esquerda.

Antes de se pensar em revolução, é preciso trabalhar para disputar e conquistar a hegemonia na sociedade. Como disse Gramsci, nas sociedades capitalistas de tipo ocidental, a revolução arde em fogo lento, onde o proletariado deve assumir a "guerra de posição", travando a luta contra-hegemonica através de seus intelectuais, contra os intelectuais da burguesia. A classe trabalhadora precisa ser dirigente, antes de se tornar dominante, mas isso os debilóides da extrema-esquerda não sabem.

"[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base" (Antonio Gramsci)

A burrice da velha esquerda


SUBVERSIVOS - Veja Agora Você Mesmo

Você se arrisca por uma causa quando é jovem
Questionando toda ordem que lhe dão
Por que há uma paixão por mudança em sua alma
E nunca se entregou a opressão, armas em mão!!!

(refrão)
Veja agora você mesmo, Como voçê vive
Veja agora você mesmo, Quem comete o crime

Você cruzou esses braços em grandes greves
Contra um patrão que só quer ter
E hoje continuas explorado como um escravo
Lutando contra um inimigo que não podes ver

(refrão)

Quando você marcha em greves, passeatas
Nas veias de um sistema sem razão
Depois de confrontar militares adestrados
Foices e martelos reinarão

(refrão)

Hoje em meio ao tulmulto
Nossa causa jaz num velho tumulo
Onde está a liberdade?
Onde está a igualdade?

(refrão)

E nas revoltas diantes dessas tropas,
Só vejo tijolos a voar
E nessa luta te prometo, camarada,
Sei que nós iremos nos vingar


Subversivos é uma banda punk comunista, e na letra da música podemos ler: "Hoje em meio ao tulmulto, nossa causa jaz num velho tumulo". Oras, porque a causa comunista está no tumulo?? Em primeiro lugar, por culpa de Josef Stalin e seus comparsas, que degeneraram o marxismo ao ponto de fazer do socialismo, uma espécie de versão esquerdista do nazi-fascismo. Regimes totalitarios e burocraticos, responsáveis pela morte de milhões de seres humanos, oprimindo o povo com uma truculencia maior do que a promovida pelo capitalismo, só poderia mesmo ocasionar a morte do comunismo.

" ... Stalin passa a implementar medidas de coletivização forçada da agricultura, apoiadas numa duríssima repressão contra os camponeses. Sabe-se hoje que essa política voluntarista e duramente coercitiva - que o próprio Stalin chamou de "revolução pelo alto" - levou à morte cerca de 10 milhões de camponeses. Por outro lado, a industrialização acelerada promovida pelos famosos planos qüinqüenais, embora tenha tido importantes resultados quantitativos, produziu fome e gerou opressão sobre os trabalhadores urbanos. Conheceu-se assim, na URSS dos anos 30, um período de intensa superexploração da força de trabalho, tanto camponesa quanto operária. Tudo isso levou à construção de um regime de terror na União Soviética."

(Carlos Nelson Coutinho; em "Atualidade de Gramsci")


Em segundo lugar, Lenin e os bolcheviques deturparam o conceito marxista da ditadura do proletariado, reinterpretando-a como ditadura do partido comunista, motivo pelo qual a Revolução Russa de outubro de 1917 acabou gerando uma ditadura de partido único, que promoveu crimes hediondos e acabou resultando no stalinismo. Depois esses comunistas de merda não entendem porque a causa deles está no tumulo. Deveriam ler "A Revolução Russa", de Rosa Luxemburgo, e os clássicos de Marx e Engels. E ler autores atuais, como Eric Hobsbawn, Carlos Nelson Coutinho, Pietro Ingrao, Jacob Gorender, etc...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Confusão à esquerda

Confusão à esquerda
Caetano Araújo*

Desde a falência repentina do socialismo real um estado de profunda e persistente confusão espalhou-se pelo campo da esquerda. As velhas receitas morreram e as novas ainda não surgiram. A maior parte das reações a essa situação apoia-se em avaliações tímidas do processo, que se recusam a chegar às últimas consequências dos fatos e resultam, normalmente, no uso obstinado de palavras de ordem obsoletas como escudo contra as evidências da nova realidade. Tudo isso mantém e amplia a confusão.

Vejo um exemplo ilustrativo dessa situação no artigo recente de José Dirceu, publicado na Folha de S. Paulo em 17 de abril, em polêmica com artigo anterior de Alberto Goldman.

Que diz Dirceu? Em síntese, que o PT nunca defendeu o modelo político de partido único, típico do socialismo real; que, pelo contrário, sempre defendeu a democracia; e, finalmente, que se mantém no horizonte do socialismo. O PSDB, por sua vez, seria um partido neoliberal, comprometido com a manutenção do capitalismo, que teria deixado um legado de pobreza, privataria e supressão de direitos dos trabalhadores.

Vou deixar de lado, no momento, os pontos em que as declarações de Dirceu entram em guerra com os fatos, como o alegado empobrecimento da população brasileira no governo tucano, para discutir seu argumento central: a permanência do PT no horizonte do socialismo.

O argumento poderia ter algum sentido se o conceito de socialismo como projeto político, social e econômico fosse claro e inequívoco. Na verdade, ocorre o oposto: o conceito de socialismo hoje é ambíguo, incerto, e abriga propostas e estratégias amplamente diferenciadas.

Enquanto existiu fora dos livros, o socialismo foi definido por duas características, relacionadas de muitas maneiras entre si: o sistema político de partido único e o controle estatal sobre os meios de produção, com a substituição do mercado pelo planejamento centralizado.

Pois bem, o sistema de partido único persiste em alguns países egressos do socialismo real, como China, Vietnã, Coreia e Cuba. O controle estatal sobre os meios de produção teve sorte ainda pior. Desapareceu da China, do Vietnã, e encontra-se hoje em franca derrocada em Cuba.

Nesse caso, que significa o horizonte do socialismo afirmado no texto do Dirceu? Operação do mercado sem freios sob a gerência do partido único? Não.

Dirceu reitera, como vimos, a rejeição do PT à experiência política da União Soviética e demais países socialistas. A alternativa, por exclusão, parece ser: democracia política mais controle estatal dos meios de produção. Em outras palavras, a expansão lenta, gradual e segura do Estado na esfera econômica.

Se socialismo é isso, novos problemas aparecem. Em primeiro lugar, esse socialismo está na contramão de toda a história recente, e sequer a crise econômica atual permite perceber alguma pista para o retorno ao mundo não-globalizado. Em segundo lugar, embora essa leitura do texto de Dirceu seja coerente com o discurso da campanha petista de 2006, está longe de refletir as opções políticas do governo nos dois mandatos do Presidente Lula.

Admitamos, por hipótese: tucanos são privatistas e petistas são estatistas. Houve alguma reestatização no governo Lula? Não, pelo contrário, o governo Lula beneficiou-se claramente das privatizações feitas no período Fernando Henrique.

Como entender essa dissonância entre o dito e o feito? Na tradição da esquerda é comum o recurso ao argumento etapista. Nessa linha, as condições objetivas impediriam a execução de objetivos programáticos mais ambiciosos, e seria preciso, por um tempo, permanecer restrito a metas mais modestas. No limite, o governo Lula seria visto como uma necessária etapa neoliberal da revolução brasileira. É possível que alguns dos partidários do governo assim pensem.

Para aqueles que não aceitam esse argumento, a alternativa é exigir, do PT e do governo, um ajuste de coerência. Há aqueles que reivindicam o ajuste pela prática: façam o que dizem! Há que estatizar, então estatizemos.

Outros, na minha opinião aqueles que extraíram todas as lições do desmoronamento do socialismo real, justamente porque o acompanharam até a tentativa final de autorreforma, demandam o ajuste pelo discurso: Digam o que fazem! Assumam que estão no campo da democracia e do mercado; que socialismo, nesse campo, só pode significar distribuição de propriedade e renda, como antes, mas também e cada vez mais de conhecimento, poder, deveres e responsabilidades; e que o instrumento para tal é o Estado, mas um Estado reformado, de novo tipo.

A partir dessas premissas podemos discutir a continuidade e a mudança entre o atual governo e o anterior; onde houve avanço e onde retrocesso; a construção do consenso sobre uma nova agenda da esquerda e a redução da confusão. O resto são projetos de eleição e de poder, com os conhecidos temperos do salvacionismo e da demonização do adversário.


* Caetano Araújo, professor do Departamento de Sociologia da UNB, é presidente da Fundação Astrojildo Pereira e editor da revista Política Democrática. Texto originalmente publicado em Debater.

O debate entre Goldman e Dirceu

Os equívocos do PT
Alberto Goldman*

A resolução política do Diretório Nacional do PT de 10/2, que se propõe analisar a crise econômica internacional, seus desdobramentos no Brasil e sua influência nos debates da sucessão presidencial é um documento que, além de simplista, é revelador. Nele o PT se recusa a fazer a análise de maneira profunda, preferindo sentenciar: “Estamos diante de uma crise do sistema capitalista como um todo, na forma neoliberal que assumiu nos últimos 30 anos”. É isso mesmo?

O mundo experimentou de 2003 a 2007 o mais intenso ciclo de expansão econômica da história, e o Brasil se beneficiou da globalização da economia mundial, com bem menos eficiência, é verdade, que países como China, Índia, Coreia do Sul e Rússia.
É fato, porém, que o sistema capitalista sofre crises cíclicas e que a atual foi precipitada pelos riscos assumidos pelos mercados financeiros e agravada por deficiências na regulamentação das suas atividades exercida pelas agências governamentais de controle.

Agora, acreditar, como faz o PT, que a crise significa um tiro de morte no sistema de produção capitalista é uma aposta que não possui nenhuma aderência à realidade. Mesmo porque inexiste hoje no mundo qualquer alternativa de organização do sistema econômico que não nos moldes da economia de mercado, com graus diferenciados de intervenção estatal — não só necessária como legítima.

Diferentemente do que pensa o PT, a superação da crise, dada sua profundidade e seu alcance, passa por uma reforma profunda das atividades financeiras em escala global e na redefinição de atividades econômicas nos países desenvolvidos, rompendo-se as cadeias de subsídios e ineficiências explicitadas por ela.

Ao PT, que se coloca como arauto de um projeto de “horizonte socialista”, exaltado na resolução, cabe a reflexão, ainda que tardia, sobre o desaparecimento no final do século passado dos regimes socialistas e comunistas do Leste Europeu. O que o PT pretende alcançar? Qual é o outro modelo econômico-social de que fala o PT?

É a volta à economia centralizada e seus mirabolantes e ineficazes planos quinquenais, com a presença esmagadora do Estado? É a instituição do regime político de partido único a conduzir todas as atividades político-econômicas? Ou é a simples troca de um projeto de nação por um projeto de poder, conforme denunciou Frei Betto em recente entrevista?

Encontramos na resolução petista a seguinte afirmação: “Os neoliberais que nos antecederam no governo do Brasil, que ainda governam Estados brasileiros e cidades muito importantes, que têm forte presença no Congresso Nacional [...]”. Ora, ora, ora, se não são os vícios de uma esquerda de pensamento antidemocrático se manifestando na expressão “ainda”.

Como se as conquistas do recente processo de democratização do país — o pluripartidarismo e a convivência de vários partidos no comando de Estados e municípios — fossem uma excrescência, e não a normalidade da vida democrática, e como se ao governo Lula se opusesse apenas uma corrente do pensamento político nacional.

Ora, ninguém minimamente lúcido, no Brasil ou no mundo, deseja uma recessão econômica. Os empresários porque, com ela, perdem muito dinheiro, e os trabalhadores porque perdem o emprego. Logo, a luta contra a recessão não é um privilégio petista. Agora, afirmar que a crise pode apressar a transição para o tal horizonte socialista, conforme afirma a resolução, não passa de delírio.

Se o governo Lula seguiu uma direção correta, foi ter-se mantido na trilha aberta pelo governo FHC de controle da inflação, responsabilidade fiscal, aumento da participação da iniciativa privada nos projetos de infraestrutura e fortalecimento do sistema financeiro nacional.

Mas batizar com novos nomes programas em andamento (o PAC é isso) ou assumir como sua a criação de projetos gestados no passado pode funcionar no campo da propaganda, mas não esconde a verdade: o que o governo Lula tem de melhor foi e é a continuidade — em uma fase de grande desenvolvimento da economia mundial, que se iniciou em 2003 e durou até 2008 — de esforços do governo anterior, algo que o governo Lula se recusa a reconhecer. Até quando vão fugir das responsabilidades com as dificuldades por que passa o país?

Eis aqui a minha modesta contribuição ao debate ideológico. Estou convicto de que a sociedade brasileira deve travar esse debate para 2010 e optar entre um projeto de poder de exclusividade de um grupo político ou um projeto de país com foco na justiça social, comprometido com a ampliação dos espaços democráticos e de cidadania.


* Alberto Goldman, 71, engenheiro civil, é vice-governador do Estado de São Paulo. Foi ministro dos Transportes (governo Itamar Franco) e secretário da Administração do Estado de São Paulo (governo Quércia)


Os tropeços de um neotucano
José Dirceu de Oliveira*

O vice-governador Alberto Goldman teve publicado nesta Folha, no dia 5, artigo intitulado “Os equívocos do PT” (“Tendências/Debates”). Anunciou seu texto como uma “contribuição ao debate ideológico que a sociedade deve travar em 2010”. Quem esperava ideias frescas e relevantes ficou frustrado.

As palavras do autor são contaminadas e orientadas pelo sectarismo antipetista das elites paulistanas. Vitupera contra um suposto “autoritarismo” de nosso partido, mas caracteriza a disputa em curso como a polarização entre “um projeto de poder de um grupo político”, o do PT, e outro “comprometido com a ampliação dos espaços democráticos e de cidadania”, que atribui a seu próprio partido. Abordagem pouco adequada, convenhamos, para quem deseja ser tratado com respeito e seriedade.

Sua atitude é a de um típico ex-comunista. Esbraveja contra crenças que possuía quando era de esquerda, não se furtando a deformá-las e atribuí-las a terceiros. No caso, ao PT. Não passa de um truque. Sua tentativa de nos insinuar como “defensores de um regime de partido único” ou dos antigos modelos socialistas é uma cortina de fumaça para que possa desfilar suas ideias neoliberais, coisa que faz com o ímpeto próprio de quem paga pedágio à oligarquia para que seja esquecido seu passado.

Todos sabem que a cultura petista forjou-se, entre outros valores, na crítica à experiência política e econômica dos países sob influência soviética. Nosso compromisso com a transformação social a partir dos mecanismos da democracia e da participação popular está na raiz do petismo. Mas sempre fizemos essas críticas sem renunciar ao socialismo como horizonte estratégico, o que irrita Goldman, cuja trajetória parece ter evoluído celeremente do dogma à abjuração.

O autor reage nervoso à recente resolução do diretório nacional de nosso partido, cujo diagnóstico identifica, na crise atual, “uma crise do sistema capitalista como um todo, na forma neoliberal que assumiu nos últimos 30 anos”. Tamanho seu destempero que, no artigo publicado, simplesmente eliminou a parte do texto petista que explica essa frase, dando a entender que o PT aposta suas fichas em políticas irreais e catastrofistas.

Que Goldman não aceite a análise petista sobre a profundidade da crise é um direito que lhe cabe. Aliás, não perdeu a chance de identificá-la como um episódio normal, fruto de “crises cíclicas”, derivada dos “riscos assumidos pelos mercados financeiros e agravada por deficiências na regulamentação de suas atividades”. Tudo não passa, em sua opinião, de um problema de gestão, jamais de sistema e modelo.

Esse seu ponto de vista não é gratuito. O ex-comunista não pode aceitar a ideia de uma crise sistêmica pelo simples motivo de que o PSDB foi e continua sendo defensor desse modelo neoliberal em colapso, delineado pela doutrina privatista que empurrou o mundo para a situação atual.

Não nos esqueçamos de que o país provou desse fel durante os oito anos de governo tucano, marcados pela ruína do Estado, supressão de direitos sociais e econômicos, privataria de patrimônio público na bacia das almas, empobrecimento das camadas populares, desemprego, explosão da dívida e subordinação ao capital internacional.

Goldman esconde dos leitores a herança maldita que significou a passagem de seu partido pelo comando da nação. Éramos um país em crise quando o presidente Lula assumiu: endividado, totalmente dependente do FMI, com todos os índices de produção e emprego em queda, a inflação em alta, o rentismo financeiro dando as cartas na economia. Por essas e outras, os eleitores derrotaram o projeto tucano nas urnas por duas vezes, em 2002 e 2006.

Não fosse a sabedoria política do povo brasileiro e o bloco de forças forjado pelo PT ao redor do presidente Lula, para dar vida a um projeto realista de substituição do modelo herdado do tucanato, o Brasil provavelmente estaria vivendo hoje as mesmas cenas de falência e bancarrota que nos marcaram em outras décadas e crises.

São tantas as omissões e invencionices do artigo que fica logo claro não ser seu objetivo, ao contrário do anunciado, debater um programa de governo para 2010 ou mesmo a crise atual. Trata-se apenas de desqualificar o PT. Seu texto é mera antecipação da mesma campanha sectária e pobre de ideias que o PSDB fez em 2002 e 2006.


* José Dirceu de Oliveira, 63, advogado, é ex-ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República (governo Lula) e ex-presidente do PT. Teve seu mandato de deputado federal pelo PT-SP cassado em 2005.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Apego ao poder e o espectro da morte

Apego ao poder e o espectro da morte
Frei Betto *

Uma das características do poder é imantar em muitos que o ocupam a pretensão de nele se perpetuar. Nada mais trágico para tais pessoas do que sua perda: ficam com baixa autoestima, sentem-se abandonadas pelos antigos correligionários, lamentam já não usufruírem dos privilégios e das mordomias de outrora. Daí o empenho de tantos políticos para se perpetuarem no poder. Ao se defender no Senado, Sarney gabou-se de estar nele há 55 anos!

A questão do poder desponta com o surgimento da cidade-Estado, no início do IV milênio a.C. É quando o ser humano se desprende do ciclo da natureza. Já não funda sua identidade nos vínculos comunitários da sociedade agrária. Sua consciência se personaliza, ele se torna senhor do próprio destino, livre das mutações ecológicas que antes criavam nele a sensação de fatalidade.

A vida, como fenômeno biológico, adquire progressivamente contornos históricos. O ser humano percebe-se como sujeito, ator social, dotado de consciência da responsabilidade e capacidade de interferir nos rumos da natureza. As provisões já não dependem apenas da coleta e da extração; surge a atividade produtiva. O mundo deixa de ser uma realidade dada; passa a ser transformado e construído.

A fundação da cidade-Estado, ao inverter a relação do ser humano com a natureza, o faz perceber que não é mais ele que deve se adaptar a ela; ela é que deve se submeter à vontade dele. A invenção do tijolo, como o comprova o episódio da Torre de Babel (Gênesis 11), permite ao ser humano fabricar a base material do mundo. A produção em série o livra dos condicionamentos ambientais e climáticos.

Assim, altera-se a função da divindade, à qual natureza e humanidade estavam implacavelmente sujeitas. Antes, os deuses atuavam movidos por forças obscuras que escapavam do controle humano. Agora, são vistos como fundamento e reflexo da hierarquia que caracteriza a cidade-Estado. O rei é tido como mediador entre as ordens celestial e terrena. Ele interfere, não apenas na natureza, mas também na história.

Embora ele seja revestido de sacralidade, as leis que promulga já não decorrem da imposição dos deuses. São obra humana, suscetível de limitações e erros, interpretações e questionamentos. E a morte, até então encarada como inevitável degradação ou acidente ditado pelo ciclo da natureza, passa a ser encarada pela ótica da tragédia.

A história do rei sumério Gilgamesh ilustra esse atávico apego de muitos ao poder. Ela chegou até nós através da Epopéia, redigida em idioma acádio numa tábua de argila do século VIII a.C. Governante da cidade-Estado de Uruk, na Mesopotâmia (atual Iraque), Gilgamesh teria vivido em 2650 a.C. A lista sumeriana dos reis o aponta como o quinto da primeira dinastia. Sua função mítica associa-se ao novo olhar sobre o poder: o supremo grau a que pode ascender uma pessoa, comparada aos deuses, e a morte passa a ser considerada inaceitável, pois deuses não morrem...

Gilgamesh se queixa de que, ao criar o seres humanos, os deuses os fizeram mortais e reservaram para si o privilégio da imortalidade. Revolta-se ao descobrir que as funções de poder são perenes, os homens que as ocupam, não.

Por sua vez, os cidadãos de Uruk reclamam da tirania de Gilgamesh. Criticado por seus súditos, ele sente a solidão do poder. Necessita de um amigo, um alter-ego, o que não encontra em Uruk. Fica sabendo, por um caçador, da existência de Enkidu, que vive no deserto e comparte a vida dos animais selvagens. É o homem que procurava. Confrontam-se as duas violências: a da natureza (Enkidu) e a da cidade-Estado (Gilgamesh). Este envia uma comitiva a Enkidu com a missão de trazê-lo do mundo rural ao mundo urbano.

Após Enkidu transar com uma prostituta, os animais do deserto já não identificam nele um igual e passam a temê-lo. Como em muitos mitos, inclusive no Gênesis, é a mulher que introduz o homem no discernimento e na vida civilizada. Enkidu encontra Gilgamesh ao entrar na cidade; surge entre os dois uma profunda amizade. Unidos, sentem-se tão fortes que desafiam os deuses. A aliança entre eles reforça o apego ao poder. À perenidade soma-se a onipotência. Porém, Enkidu se enferma e morre. O imprevisto acontece.

Gilgamesh, solitário, se revolta. Recusa-se a aceitar a morte. Ele se torna "o grande homem que não quer morrer", diz o texto. Decide partir e aprender com Uta-napishti - único sobrevivente do dilúvio -, a receita da vida sem fim. O poderoso não admite que a morte o destrone do poder.

Shamash, o deus-Sol, o adverte: "Você jamais encontrará a vida sem fim que procura". Gilgamesh não se conforma de, após a morte, encontrar apenas um estado de inanição e sono sem fim. Uta-napishti insiste com Gilgamesh para que ele admita não merecer dos deuses o privilégio da imortalidade.

O poder pode tudo, exceto evitar que os poderosos sejam "derrubados de seus tronos e, pela morte, despedidos com as mãos vazias", como canta Maria no Magnificat (Lucas 1, 46-55).


*Frei Betto é frei dominicano, escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Carta aberta a população do Estado do Rio de Janeiro

Carta aberta a população do Estado do Rio de Janeiro:

Nós, professores servidores do Estado do Rio de Janeiro, escrevemos esta carta aberta à população do Rio de Janeiro para mostrar aquilo que realmente envolve a questão do Nova Escola e a diminuição do nosso plano de carreira.

A princípio, não foi dito o valor do salário do professor estadual, que é de apenas R$607,26. A população deve imaginar que recebemos alguma ajuda extra, como vale transporte, vale refeição, que qualquer empresa é obrigada a pagar a seu funcionário. Porém, não é isso o que acontece, não recebemos estes benefícios que são direito de todo o trabalhador, e ainda temos o desconto previdenciário de 11%, recebendo um salário líquido de aproximadamente R$540,00.

O Governo faz propagandas na televisão dizendo que deu laptops para todo professor, mas na verdade, estes laptops foram adquiridos pelo sistema de comodato. Atualmente, observamos a climatização das salas de aula, onde o Governo aluga os aparelhos e ainda terá um consumo absurdo de energia elétrica, gerando contas de luz bastante elevadas.

A incorporação do Nova Escola, se dará até 2015, em 7 parcelas. O governador já se considera reeleito. Um outro ponto, é o grande número de pedidos de exoneração de professores, estima-se que seja aproximadamente 30 por dia! Não existem condições de trabalhoe isso nos incomoda.

Contudo, o que mais nos deixa indignados, é a carta compromisso enviada a nossos lares onde o mesmo governador empenha sua palavra e agora se esquece de tudo aquilo que prometeu.

Não somos ouvidos, e ainda vemos a imprensa nos virar as costas e distorcer a situação real. Somos pais e mães de família, que fizeram um curso superior, na esperança de um futuro melhor.

Contamos com a compreensão e a colaboração da população do Estado do Rio de Janeiro.

Uma doença coletiva

Uma doença coletiva
Luiz Weis

É confortador imaginar que, nas suas proporções conhecidas, a corrupção um dia se tornará disfuncional para o desenvolvimento brasileiro. Seria uma questão de incompatibilidade. O argumento é que, a partir de um certo patamar, por força da própria evolução de suas relações com a esfera pública, as forças do sistema econômico finalmente pressionariam os governos a reduzir a dimensões toleráveis o espaço que neles ocupam o patrimonialismo, a patronagem e o coronelato político, remanescentes de um País que teria caducado.

Mas não convém apostar nisso o último centavo. Comparando: o mundo já mostrou que a economia de mercado, ou qualquer outra que tentou substituí-la, não é nem a irmã nem a parteira da liberdade e da democracia, salvo quando o bloqueio à circulação de ideias trava o crescimento, por inibir a inovação científica e tecnológica - o que foi o caso da União Soviética, mas não é, longe disso, o caso da China.

Do mesmo modo, a economia é perfeitamente capaz de avançar num cenário de práticas políticas arcaicas - desde que não se voltem contra ela. Do contrário, a corrupção entranhada no seu sistema político teria impedido o Japão de ser a segunda maior potência econômica do globo. (A esbórnia também corre solta na China, sem efeitos palpáveis sobre a sua fabulosa expansão.)

Claro que a corrupção produz, no acumulado, um incalculável desperdício de recursos. A captura dos Poderes do Estado pelas caciquias políticas e seus parceiros na sociedade, assim como a infinidade de pedágios que os agentes econômicos pagam às máfias burocráticas para prosperar - em determinados setores, um dado central da competição entre as empresas -, cria um aluvião de gastos que de outro modo teriam um destino socialmente mais justo.

Só que o fato de tudo sair mais caro do que precisaria, décadas depois de décadas, não impediu que o País crescesse nem impedirá que continue a crescer. O perverso repasse dos custos, de quem pode mais para quem pode menos, garante a perpetuação do processo. A qualidade dos serviços públicos dos quais a maioria da população depende seria naturalmente outra, mas desde quando isso foi um breve contra a corrupção? Para a imensa constelação de interesses que conhecem o caminho das pedras, dá no mesmo.

Ainda agora, na passagem dos 15 anos do Plano Real, uma profusão de comentaristas destacou que a estabilização monetária criou condições para mudanças institucionais que provocaram reações em cadeia na gestão macroeconômica e no manejo das finanças públicas. Mas é como se nada disso tivesse acontecido, a julgar pela persistência dos velhos costumes políticos. Eles eram coerentes com o Brasil pré-Real, mas só em teoria se tornaram incoerentes com o pós. O poder oligárquico opera com as metas, os métodos - e em geral com os resultados - de sempre.

A sequência dos escândalos no Senado mostrou como vai bem, obrigado, a forma de proceder dos políticos que espelha, com desenvoltura típica, a disseminada "cultura da transgressão" de que fala o historiador Boris Fausto. Nela se escora a impunidade que do lado de cá tanto se condena, mas não a ponto de desencadear uma contestação efetiva ao seu reinado. Provavelmente porque, embora em muitos aspectos o Brasil se tenha renovado, a complacência com o ilícito segue inabalada.

Em parte, pelo cálculo de conveniências - caso do presidente Lula quando coloca o senador José Sarney sob a proteção do governo. Em parte, pela resignação dos escandalizados. Esse é um ponto que não pode ser excessivamente sublinhado. Quaisquer que sejam as suas modalidades, a corrupção se mantém porque o País pode ir para a frente coexistindo com ela e porque a rotina da privatização do patrimônio comum não é desafiada por valores amplamente compartilhados em sentido contrário.

Os defensores da ética na atividade pública pregam para os convertidos. Os outros formam na legião dos desesperançados ou dos indiferentes. Os novos incluídos que se beneficiaram da combinação singular do recente ciclo de prosperidade com os ousados programas sociais de Lula não estão nem aí para a lambança dos políticos e dos operadores do aparelho de Estado. E por que haveriam de estar? A melhora de seu padrão de vida não dependeu da diminuição dos níveis de corrupção nas instituições lá de cima.

Instituições - para quantos brasileiros isso realmente importa? Para a economia, sem dúvida. Afinal, embora varadas de fraudes, o seu funcionamento e sua estabilidade são essenciais para a segurança dos empreendimentos. Para outros setores vocais da sociedade, nem o receio de que a sua erosão as mergulhe numa crise de efeitos insuspeitados os leva a articular um projeto para o seu resgate preventivo.

É um panorama paradoxal. Este é o país em que o recém-eleito presidente da UNE diz, numa boa, que "é mais do que legítimo que o governo financie o movimento estudantil" - uma forma de corrupção como qualquer outra. Mas é também o país em que, segundo uma consulta que recebeu nada menos que 500 mil respostas, a maioria falou espontaneamente em valores como ética e honestidade ao responder à pergunta: "O que deve mudar no Brasil para sua vida melhorar de verdade?"

As pessoas podem fazer a coisa errada, mas pelo menos sabem qual é a coisa certa. Ou, como observou a senadora Marina Silva, em artigo na Folha de S.Paulo de segunda-feira, comentando a consulta que dará o mote para o próximo relatório das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano no Brasil: "Não se trata de colocar no pedestal a sociedade supostamente virtuosa contra um território vicioso, que seria o da política. Há enormes contradições entre o que se entende ser o correto e aquilo que de fato se pratica."

Essa contradição é agravada pelos "sinais emanados das instituições", diz ela. "É um processo que acaba virando doença coletiva." É também um círculo vicioso que nada interrompe.

Luiz Weis é jornalista

Catilina abusa de nossa paciência

Catilina abusa de nossa paciência
Frei Betto

“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?”, indagou Marco Túlio Cícero ao senador Lúcio Sérgio Catilina, a 8 de novembro de 63 a.C., em Roma. Flagrado em atitudes criminosas, Catilina se recusa a renunciar ao mandato.

Cícero, orador emérito, respeitado por sua conduta ética na política e na vida pessoal, pôs em sua boca a indignação popular: “Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos?”

“Ó tempos, ó costumes!”, exclamou Cícero movido por atormentada perplexidade diante da insensibilidade do acusado. “Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se nem a noite, com suas trevas, pode manter ocultos os teus criminosos conluios; nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração; se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público?”

Jurista, Cícero se esforçou para que Catilina admitisse os seus graves erros: “É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós mais claros que a luz do dia.”

Se Catilina permanecia no Senado, não era apenas a vontade própria que o sustentava, mas sobretudo a cumplicidade dos que teriam a perder, com a renúncia dele, proveitos políticos. Daí a exclamação de Cícero: “Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso?”

Cícero não temia ameaças e expressava o que lhe ditava o decoro: “Já não podes conviver por mais tempo conosco; não o suporto, não o tolero, não o consinto. (…) Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? (…) Refiro-me a fatos que dizem respeito, não à infâmia pessoal dos teus vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas sim aos superiores interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós.”

Os crimes de Catilina escancaravam-se à nação. Seus próprios pares o evitavam, como assinalou Cícero: “E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio?”

Catilina fingia não se dar conta da gravidade da situação. Fazia ouvidos moucos, jurava inocência, agarrava-se doentiamente a seu mandato. “Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus concidadãos te receiam” – bradou Cícero -, “eu, por Hércules, sentir-me-ia compelido a deixar a minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu atinges na alma e no coração?”

Cícero não demonstrava esperança de que seu libelo fosse ouvido: “Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te?” E não poupou os políticos que, apesar de tudo, apoiavam Catilina: “Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou não veem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que veem.”

Acuado, Catilina se refugiou na Etrúria e morreu em 62 a.C. Cícero, afastado do Senado por Júlio César, foi assassinado em 43 a.C. Um século depois, Calígula, desgostoso com o Senado, nomearia senador seu cavalo Incitatus, com direito a 18 assessores, um colar de pedras preciosas, mantas de cor púrpura e uma estátua, em tamanho real, de mármore com pedestal em marfim.

Frei Betto é frei dominicano e escritor

SOCIALISMO COM LIBERDADE E DEMOCRACIA



"O melhor terreno para mudanças consistentes é o terreno da democracia. Em condições autoritárias, o objetivo fundamental da mudança passa a ser a própria democracia. Outras demandas, a luta pela igualdade social, por exemplo, ficam obscurecidas, subordinadas. Conquistada a democracia, trata-se de aprofunda-la, basicamente, em dois planos: no plano institucional, de aperfeiçoamento do jogo democrático, e no plano da conquista da igualdade, do progressivo desenvolvimento social em todos os níveis. A democracia é um valor estratégico, universal, meio e fim." (José Genoíno, deputado federal do PT/SP)

O socialismo precisa ser refundado, tendo por base a defesa da democracia como valor universal. A história nos mostrou que igualdade sem democracia é uma miragem. Sempre que a liberdade é sacrificada, privilégios velhos e novos ganham força. A igualdade é irmã gemêa da liberdade.

Homens como Alexander Dubcek, Salvador Allende, Enrico Berlinguer, Mikhail Gorbachev, Chico Mendes, e tantos outros, enriqueceram o campo da esquerda ao defender o socialismo com democracia, demonstrando que socialismo não pode ser sinonimo de totalitarismo, ditadura de partido único, burocracia, violações de direitos humanos, e demais barbaridades que a fracassada experiência do "socialismo real" acabou promovendo. Recordando a revolucionária Rosa Luxemburgo:

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Já em 1918, Rosa alertava para os riscos do autoritarismo bolchevique, que ela sempre criticou, e deixou claro que ditadura do proletariado não era ausência de democracia, muito menos obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora. Entretanto é preciso ter consciência das mudanças ocorridas desde aquela época, basta observar o fato dos trabalhadores terem conquistado cidadania plena, através da legalização dos partidos operários e dos sindicatos, da conquista do pleno direito de greve, da jornada de trabalho de 8 horas diárias, de férias remuneradas de trinta dias, do seguro desemprego, de salários decentes e condições de trabalho humanitarias, do voto secreto e universal, etc. Até mesmo as mulheres conquistaram cidadania, não somente através da conquista do direito de voto, mas também com a conquista da participação cada vez maior no mercado de trabalho, licença maternidade, legalização do divórcio, etc. Portanto é loucura ainda hoje falar em ditadura do proletariado, uma vez que o capitalismo se democratizou em virtude dessas conquistas que os trabalhadores, tanto homens como mulheres, obtiveram em virtude de sua organização e luta. A democracia é um valor universal, e a refundação do socialismo passa pelo reconhecimento dessa questão.

A refundação do socialismo exije o abandono de toda herança oriunda da tradição bolchevique, assim como a revisão do próprio pensamento marxista. A esquerda não pode ser dogmatica, até porque a história mostrou que é evidente a existência de inúmeros equívocos no marxismo, como inclusive demonstra o historiador Jacob Gorender em "Marxismo sem utopia".

"Marx era um determinista utópico. Queria algo que a realidade não confirmou. Previu que, com o avanço das forças produtivas, a humanidade gozaria de fartura plena. A produtividade não teria limites. Não é verdade. Apesar dos avanços tecnológicos, há o limite ecológico para a produtividade. Não se pode crescer a ponto de deteriorar o ambiente em que o homem vive. Isso Marx não pensou. Outra previsão equivocada foi a do desaparecimento do Estado. Como não haveria mais classes sociais na evolução marxista, então o Estado seria desnecessário. Haveria uma espécie de autogoverno das comunidades. Impossível. As sociedades necessitam do Estado, até porque há prioridades a definir. Que meios de transportes usar? Qual a produção industrial? Serviços de saúde, educação, quem vai decidir sobre isso? Só pode ser o Estado, democrático e de direito." (Jacob Gorender; em entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 19/02/2006)

Os socialistas defendiam até recentemente o fim do capitalismo, o que significava a abolição da propriedade privada dos meios de produção, distribuição e troca, com a estatização dessa propriedade em nome de sua socialização e a substituição do mercado por uma economia planificada. Entretanto a fracassada experiência do chamado "socialismo real", assim como o sucesso incontestável do "socialismo de mercado" na China e no Vietnã, demonstram claramente que a esquerda precisa repensar essa questão. Não que os socialistas devam renunciar a luta pelo fim do capitalismo e a favor da construção de uma sociedade mais humana, justa e igualitária. Mas é evidente que a propriedade privada e o mercado não podem ser abolidos, ao menos não da noite para o dia. Será um processo longo, onde o socialismo irá conviver com o mercado e com a propriedade privada por um bom tempo. É preciso seguir o exemplo bem sucedido do "socialismo de mercado", tanto que até mesmo os cubanos, apesar de faze-lo de forma extremamente timida, começam a promover reformas nesse sentido. Na Venezuela, apesar de todo discurso socialista do presidente Hugo Chávez, também não se pensa em estatizar toda propriedade dos meios de produção, distribuição e troca, mas apenas aqueles setores que são estratégicos.

O sucesso do governo Lula, por exemplo, se deve ao abandono da concepção estatista que a esquerda possuia, até porque nem todas as privatizações promovidas pelo governo FHC foram lesivas aos interesses populares, basta observar por exemplo o setor de telefonia, onde a privatização garantiu o acesso das classes trabalhadoras a telefonia fixa e celular. É loucura a posição da chamada "oposição de esquerda", que defende a reestatização das empresas privatizadas e até mesmo a estatização do sistema financeiro. Esse pessoal do PSOL e das "seitas" aliadas a esse partido, representam a mentalidade da velha esquerda. O socialismo não se estabelece por decreto, será construido processualmente por um periodo de tempo bem longo.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)

Até mesmo o historiador Eric Hobsbawn, um dos maiores nomes do marxismo na Europa, reconhece a necessidade da existência do mercado no socialismo.

"Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. (...) A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado." (Eric Hobsbawn)

Como socialistas precisamos estar abertos aos novos paradigmas que a história nos coloca, abrindo mão do dogmatismo que havia transformado a filosofia marxista em uma espécie de religião. Precisamos ter coragem para refundar o socialismo, tendo por base uma ética humanista e uma profunda consciência democrática, pois afinal sabemos que sem liberdade, não pode existir socialismo.

"A esquerda do século XXI deve se basear na democracia como valor universal. Nenhuma conquista, nenhum objetivo estratégico, nenhuma revolução, se justifica fora dos marcos radicais da democracia." (Roberto Freire)

Na Itália, esse processo de refundação do socialismo está em curso. Os socialistas de Unire La Sinistra(http://www.unirelasinistra.net/), do Movimento per la Sinistra(http://www.movimentoperlasinistra.it/), e da Sinistra Democratica(http://www.sinistra-democratica.it/), se aliaram aos ecologistas da Federazione dei Verdi(http://www.verdi.it/), e aos social-democratas do Partito Socialista(http://www.partitosocialista.it/), formando a coalizão Sinistra e Libertà(http://www.sinistraeliberta.it/)

Essa coalizão é o embrião de uma nova esquerda, radicalmente democrática, ecológica e humanista, que visa refundar o socialismo, consolidando assim o processo iniciado por Enrico Berlinguer ao lançar a tese da democracia como valor universal.

Sinistra e Libertà deve servir de exemplo para os socialistas brasileiros e latino-americanos.