sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Chico Mendes, herói nacional



A dor da gente saiu no jornal
Marina Silva

Se Chico Mendes fosse vivo, certamente estaria na internet divulgando suas idéias e pedindo apoio à causa da floresta amazônica e das populações tradicionais e extrativistas que nela vivem. Ele tinha consciência aguda do papel da mídia para o movimento social. Se mais pessoas soubessem o que acontecia lá no Acre, se tivessem oportunidade de conhecer o pensamento dos seringueiros, talvez houvesse mais apoio para evitar que o dano irreversível acontecesse, com a derrubada da floresta.

Na época, a maior parte da imprensa de Rio Branco era muito hostil. Na maioria das vezes, Chico era tratado como intransigente inimigo do progresso, enquanto a situação real mostrava acelerada destruição ambiental e o deslocamento massivo de trabalhadores extrativistas para a periferia das cidades.

Chico procurava jornalistas que poderiam ter abertura para divulgar nosso lado, entender a resistência à motoserra, sensibilizar pessoas do Acre e de fora. Visitava redações, escrevia cartas e as levava pessoalmente. Eu achava aquilo muito constrangedor e me doía quando os jornais soltavam notinhas tripudiando.

No final de 1988 me preparava para ir a São Paulo tentar um tratamento contra a hepatite B. Antes de viajar, passei alguns dias em Xapuri, hospedada na casa do Chico, como sempre fazia quando estava lá. Ainda me emociono quando penso na nossa relação de amizade, confiança e fraternidade. Naquela casa tão pequena, de um único quarto, eu era abrigada num colchonete no chão, junto das crianças, ao lado da cama de Chico e de Ilzamar. Na maioria das vezes, na verdade, quem ia para o chão era o Chico e eu e Ilza ganhávamos o conforto da cama.

Na minha partida para Rio Branco, de onde seguiria para São Paulo, ele foi me acompanhar até a rodoviária. Fomos caminhando pela rua e puxou uma conversa triste e angustiante: "Desta vez não tem mais jeito. Acho que os cabras vão me pegar". Tentei achar uma saída: "Por que você não fala com o pessoal lá de Rio Branco pra denunciar nos jornais?". Ele respondeu de uma tal forma que me fez perceber o quanto estava desanimado e encurralado: "Não adianta, eles dizem que estou me fazendo de vítima, que quero posar de mártir pra me promover. Tem até jornalista que faz piada". Continuamos andando num silêncio que nenhum dos dois sabia como romper. Senti que ele estava perdendo as esperanças na insistente militância para dar visibilidade ao movimento seringueiro e buscar aliados.

Fora do Acre tínhamos algum oxigênio. Os amigos ambientalistas e admiradores do Chico denunciavam, acionavam as autoridades federais, mas no estado o ambiente institucional era de violência e desmando, misturado a interesses que viam a derrubada da floresta e sua transformação em pastos e fazendas como a forma mais rápida de lucrar com a "colonização" da Amazônia.

Cheguei a São Paulo, fiquei na casa de parentes, em Ribeirão Pires. No dia 22 de dezembro de 88, fui à primeira consulta com o naturopata Adauto Vilhena e saí bem animada. Às dez da noite, o Gilson, primo de meu marido Fábio, ligou de Rio Branco: "Marina, fica calma". Eu respondi: "Mataram o Chico Mendes". Ele perguntou: "Como é que você sabe?". Desliguei o telefone porque não conseguia dizer mais nada.

Fábio e eu demoramos a conseguir dinheiro para as passagens de volta, mas ainda chegamos a tempo de assistir a missa de sétimo dia. A notícia tinha saído na primeira página do New York Times e o colunista Tom Wicker dissera que os tiros que mataram o Chico eram "disparos contra toda a humanidade". Só então a mídia brasileira despertou para a importância do fato e para o significado daquele seringueiro e de sua luta. Os telefones do PT e do sindicato não paravam de tocar. Eram jornalistas do país inteiro - além da mídia estrangeira - querendo informações sobre o Chico. Tudo se passou como um movimento especular. Só quando nos vimos refletidos no espelho do mundo desenvolvido é que reconhecemos quem nos era de enorme valor.

Se não tivesse saído no New York Times, se não tivesse chegado a Rio Branco uma comissão de parlamentares americanos liderada por Al Gore, para se solidarizar com o movimento seringueiro e a família de Chico, talvez a morte dele tivesse sido apenas mais uma no rol dos assassinatos de lideranças de movimentos sociais que eram - e continuam sendo - rotina sinistra na Amazônia. No próprio Acre, Wilson Pinheiro, a maior liderança extrativista antes de Chico, também foi assassinado. E assim como ele, Ivair Higino, Calado, Elias, e tantos outros.

Com Chico foi diferente talvez por circunstâncias históricas, mas muito porque ele tinha um jeito único de entender o movimento. Sempre como ponte para uma aliança, sempre como forma de atrair diferentes pensamentos e experiências, desde que convergissem no essencial, nos valores. Nisso, foi além de seu tempo. De homem simples, introspectivo, pensativo, transformou-se numa referência impregnada em tudo o que aconteceu depois em termos da relação da sociedade com a proteção ambiental e do significado da Amazônia e de seus povos para o Brasil e para o mundo.

É incrível como temos dificuldade de reconhecer nossos próprios tesouros até que alguém nos diga: "isso não é pedra, é ouro." Primeiro um olho externo vê e nós nos vemos através dele. O bom é que, 20 anos depois, parece que temos nossas próprias lentes sobre a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica e todos os nossos biomas. Respeitamos mais as populações tradicionais, temos mais convicção sobre a importância do Brasil e sabemos que somos uma potência ambiental. Não é o suficiente para revertermos distorções históricas, mas já é um bom começo.

E Chico Mendes antecipou essa visão ao perceber que, na Amazônia, o caminho correto estava na junção da luta por uma sociedade mais justa com a defesa do meio ambiente e do uso respeitoso dos recursos naturais. Ele conseguiu viver e sintetizar dois mundos que naquela época pareciam ter pouco a ver um com o outro: o do movimento social de esquerda, focado na luta sindical pela reforma agrária, e o do ambientalismo, com sua visão global de processos ecológicos e de proteção dos ecossistemas.

O Chico foi apropriado pela sua causa, assim como Luther King, Gandhi, Mandela o foram pelas suas. E todos tiveram em comum a capacidade de escancarar novas maneiras de ser e de agir, projetando o futuro na prática. Acredito em valores morais e universais e também que eles são objeto de descoberta tanto quanto as fórmulas científicas. Só que são descobertos em nosso coração em primeiro lugar, depois vêm para a razão.

As pessoas que fazem a diferença no mundo são aquelas que se orientam pelo coração e por valores, não aquelas que simplesmente fazem coisas. Sem isso, ninguém suportaria trinta e tantos anos em uma cadeia, como o Mandela, e sairia de lá íntegro, pronto para retomar a sua luta. E certamente também foi por algo muito maior que Chico Mendes recusou o convite para refugiar-se nos Estados Unidos como forma de se proteger das ameaças de morte. Ele respondeu que seu lugar era "com os companheiros".

Os assassinos de Chico Mendes pretendiam desconstituir o movimento social, dar o tiro de misericórdia na resistência dos seringueiros, acabar com as incipientes tentativas de proteger a integridade da floresta. Não deu certo. Vinte anos depois, Chico continua "com os companheiros", que carregam em si os ensinamentos e os valores do seu grande líder e os espalham por onde passam, nas suas ações, na suas vidas, nos seus sonhos.

Marina Silva é senadora pelo PT do Acre

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Os 50 anos da Revolução Cubana




Cuba era uma colônia espanhola, mas foi conquistada pelos EUA em 1898, quando os estadunidenses derrotaram os espanhois na Guerra Hispanico-Americana. Cuba permaneceu ocupada pelos EUA até 1902, sendo liberada depois da aprovação de uma emenda à Constituição cubana que dava o direito, aos EUA, de invadir Cuba a qualquer momento em que os interesses econômicos dos EUA fossem ameaçados. A chamada Emenda Platt permaneceu mantendo Cuba um protetorado estadunidense até 1933.

Fulgêncio Batista, um militar mulato, assumiu o poder após liderar um golpe militar em 1933, e governou o país até 1944. A corrupção tomava conta de Cuba, e o capital proveniente do submundo ítalo-americano (a máfia dos EUA) financiava grande parte da economia cubana. Em 1952, o general Fulgêncio Batista liderou um novo golpe militar e reassumiu o poder, estabelecendo uma ditadura que era submissa aos interesses estadunidenses, inclusive 40% da produção açucareira da ilha era controlado diretamente pelo capital yankee. Isso gerou um grande sentimento de anti-americanismo na população cubana, e no dia 26 de julho de 1953, Fidel Castro - um advogado membro do Partido Ortodoxo - liderou um ataque ao quartel de Moncada. Frustada a tentativa, os rebeldes foram para a prisão e, em maio de 1955, depois de anistiados, foram para o exílio no México.

Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA, inclusive em 1958, havia um total de 500 prostitutas em Havana, sendo a indústria da prostituição a mais rentável da ilha. A prostituição, a corrupção e negociatas caracterizaram a era Batista, e, pouco a pouco, a classe média afastou-se do regime.

Fora de Cuba, Fidel e seu irmão, Raul Castro, conheceram o médico argentino Ernesto "Che" Guevara, e juntos organizaram o movimento 26 de julho, com o claro objetivo de voltar a Cuba a derrubar a ditadura de Batista. Compraram o iate Granma, que partindo do México com cerca de 80 revolucionários, dirigiu-se a Cuba para iniciar a revolução em 2/12/1956.

O desembarque dos revolucionários do iate Granma estava sendo esperado pelas tropas de Fulgênio Batista(o ditador cubano que era "capacho" dos EUA), e marcou-se por uma sangrenta luta que levou à morte a maior parte dos integrantes do movimento.

Fidel, Raul e "Che" conseguiram chegar à Sierra Maestra, de onde passaram a organizar os camponeses para a luta armada. Ao mesmo tempo, os rebeldes buscavam o apoio de setores da burguesia contrário à ditadura de Fulgêncio Batista e que acreditavam em um projeto nacionalista para Cuba, dentro do respeito à propriedade privada. Era assinado, então, o Manifesto de Sierra Maestra, que no ano seguinte, 1958, foi ampliado pela formação da Frente Cívico-Revolucionária Democrática, no qual a burguesia cubana concordava com a luta armada para depor Fulgêncio Batista.

Em outubro de 1958 teve início a "Marcha sobre Havana", que cai em mãos dos rebeldes em 1º de janeiro de 1959. Com a fuga do ditador, montou-se o Governo Provisório, tendo à frente o presidente Manuel Urrutia e o primeiro-ministro Miró Cardona, que no início era apenas reformista. O comandante Fidel Castro substituiu Miró Cardona no cargo de primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959, e Miró Cardona tornou-se o embaixador de Cuba na Espanha.

São nacionalizadas empresas norte-americanas de petróleo e transporte, reformuladas as políticas de educação e saúde pública, suprimidos os latifúndios e realizada a reforma agrária.

A tensão entre a burguesia e as camadas populares se ampliam na medida em que essas consideravam as reformas precárias em relação às suas necessidades. Logo, o presidente Manuel Urrutia é substituído por Osvaldo Dorticós, o que levou à preponderância dos anseios populares.

As medidas reformistas foram suficientes para provocar o descontentamento norte-americano, que foi impondo uma série de medidas restritivas - como por exemplo o boicote ao açúcar cubano. No final de 1960, Miró Cardona e os setores da burguesia que haviam apoiado a revolução, se unem aos americanos no objetivo de derrubar o governo Fidel Castro. Os anticastristas liderados por Cardona são armados e treinados pela CIA(agência de inteligencia americana), e realizam em abril de 1961, a tentativa de invasão ao território cubano no malogrado desembarque à Baía dos Porcos.

As pressões norte-americanas, em meio à Guerra Fria, culminaram com a expulsão de Cuba da OEA, em 1962. Desse episódio, a URSS aproveita-se para enfraquecer as posições dos Estados Unidos e prometem instalar uma base de mísseis em Cuba, gerando um dos episódios mais tensos da Guerra Fria, quando navios americanos impedem a frota russa de chegar à ilha, em outubro de 1962.

Em troca de pretensa paz mundial, Estados Unidos e URSS assinam um acordo em que a URSS se compromete a não instalar bases de mísseis em Cuba e os Estados Unidos a não tentar invadir novamente a ilha. A partir de então, Cuba passa a vivenciar a primeira experiência socialista da América Latina.

Em 1963, foi criado o Partido Unificado da Revolução Socialista que, em 1965, foi substituído pelo Partido Comunista Cubano.

As conquistas sociais da revolução

A educação é controlada pelo Estado e a Constituição de Cuba determina que o ensino fundamental, médio e superior devem ser gratuitos a todos os cidadãos cubanos.

Em 1958, antes do triunfo da revolução, 23,6% da população cubana era analfabeta e, entre a população rural, os analfabetos eram 41,7%. Após a vitória da revolução, se realiza uma campanha nacional para alfabetizar a população e Cuba torna-se o primeiro país do mundo a erradicar o analfabetismo (Segundo dados do próprio governo). Hoje não há mais analfabetos em Cuba. Segundo o The World Factbook 2007 (1), publicado pela CIA, 99.8% da população cubana, acima de 15 anos, sabe ler e escrever. De acordo com os resultados obtidos nos testes de avaliação de estudantes latino-americanos, conduzidos pelo painel da Unesco, Cuba lidera, por larga margem de vantagem, nos resultados obtidos pelas terceiras e quartas séries em matemática e compreensão de linguagem. "Mesmo os integrantes do quartil mais baixo dentre os estudantes cubanos se desempenharam acima da média regional", disse o painel (2).

Em Cuba a prestação de serviços relacionados à saúde é totalmente gratuito, o que se espelha em seus indicadores padrão. A taxa de mortalidade infantil abaixo de 5 (probaliblidade de morrer antes dos 5 anos) em Cuba é 7, (índice só superado nas Américas pelo Canadá, onde é de 6; nos Estados Unidos é 8, e no Brasil é 33) (3) . A expectativa de vida ao nascer em Cuba é de 75 anos para os homens e de 79 para as mulheres; nos Estados Unidos é de 75/80 (4).

(1) The World Factbook — Cuba
(2) MARQUIS, Christofer. Cuba Leads Latin America in Primary Education, Study Finds. The New York Times, 14 de dezembro de 2001
(3) Probability of dying (per 1 000 live births) under five years of age (under-5 mortality rate) , 2005. Organização Mundial da Saúde
(4) Life expectancy at birth (years), 2005. Organização Mundial da Saúde

Entretanto é preciso lembrar que essas conquistas sociais da revolução não podem servir de máscara para esconder o fato de Cuba, ser uma ditadura burocratica de partido único, onde não existe liberdade de expressão, e muito menos liberdade de imprensa. Em Cuba quem pensa diferente do governo pode perder o emprego e pior, ser preso. Se não bastasse isso, o regime castrista executa quem tenta fugir do país(como ocorreu em 2003, quando três sequestradores de um barco que tentavam fugir para os EUA, foram executados apenas duas semanas após serem presos. Mesmo dentro do capitalismo não se condenam seqüestradores à morte, especialmente se não houve mortes, e os prazos de defesa em geral são maiores).

Mesmo na educação, onde Cuba consegue indices invejados por nós, como ter erradicado o analfabetismo e garantir um ensino gratuito e de qualidade do nível fundamental ao nível superior, a discriminação educativa por razões políticas é um fato que ainda se mantém e deve ser condenado.

O historiador marxista Jacob Gorender, um dos mais importantes intelectuais da esquerda brasileira, deixa claro sua oposição ao regime de partido unico em Cuba.

"O regime ideal para Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 16)

Ditadura de partido unico, regimes totalitarios e burocratizados, não fazem parte daquilo que a filosofia marxista defende. Essas aberrações são oriundas do leninismo, também conhecido como bolchevismo, ou seja, são oriundas da concepção socialista desenvolvida por V.Lenin e demais revolucionários russos de "Outubro de 1917", que deu inicio a degeneração do marxismo e abriu caminho para o surgimento da bestialidade stalinista, originando o finado "socialismo real", do qual a ditadura castrista é herdeira.

Sou defensor de um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia, por isso me oponho a ditadura castrista em Cuba. Me oponho aqueles que defendem acriticamente o regime castrista, confundindo a defesa da Revolução Cubana com a defesa do regime liderado por Fidel e seu irmão, Raúl Castro.

A esquerda precisa apoiar com todo empenho a Revolução Cubana, a sua luta contra o imperialismo, as suas conquistas sociais, sem contudo confundir isso com apoio a ditadura de partido unico existente em Cuba.

A renúncia de Fidel Castro em fevereiro abriu claras perspectivas de reforma no socialismo cubano. No dia 28/02, o ministro das Relações Exteriores de Cuba, Felipe Pérez Roque, assinou na sede da ONU, em Nova York, dois tratados internacionais que ampliam as garantias de respeito aos direitos humanos no país. O governo de Raúl Castro suspendeu a proibição da venda de diversos artigos eletrônicos na ilha, como computadores e aparelhos de DVD, além de ter liberado o acesso a telefonia celular. Além disso, na Assembléia Nacional de Cuba está em discussão um projeto de lei que estabelece os direitos civis para homossexuais, bissexuais e transgenêros.

O governo cubano também decidiu ceder terras estatais ociosas a cooperativas e produtores privados, em medida destinada a impulsionar a produção de alimentos, café e fumo. Além disso, o governo cubano anunciou, no começo de junho, o prazo para a eliminação do igualitarismo salarial e a substituição do atual sistema por uma gestão na qual o pagamento é feito com base no rendimento e produtividade.

BBC Brasil - 31 julho, 2008

Raúl Castro marca dois anos no poder com reformas em Cuba



O presidente Raúl Castro completa dois anos à frente do governo de Cuba, um período que começou com o irmão do líder Fidel Castro conseguindo manter a estabilidade no país.

Raúl assumiu o cargo em 31 de agosto de 2006 e foi eleito pela Assembléia Nacional do Poder Popular (o Parlamento cubano) no dia 24 de fevereiro deste ano, assumindo oficialmente o cargo de presidente.

Entretanto, desde agosto de 2006, Raúl Castro conseguiu manter os rumos políticos do país, a população tranqüila no momento de transição, os americanos quietos com uma proposta de diálogo com os Estados Unidos e o próprio país funcionando.

Para conseguir tudo isto, Raúl Castro contou com o apoio de seu irmão e com sua própria habilidade para dividir responsabilidades.

Bases

Ao compreender que sua permanência no cargo de presidente não seria temporária, Raúl Castro começou a lançar as bases de seu governo.

O primeiro passo foi pedir aos secretários provinciais do Partido Comunista Cubano (PCC) a aos dirigentes de grandes empresas que enviassem suas críticas ao funcionamento do sistema em suas respectivas áreas de trabalho. E propostas concretas para a solução destes problemas.

Castro recebeu de volta uma avalanche de opiniões que refletiam as incoerências de um sistema econômico dirigido por critérios políticos, estruturado sobre a base de um modelo ideológico.

As mudanças teriam que ser profundas e, no dia 26 de julho de 2007, Castro fez o anúncio destas mudanças, pouco antes de iniciar um debate nacional que tornou públicas as críticas da população e proporcionou o apoio político que precisava para iniciar as transformações.

Mesmo com os mais ortodoxos tentando limitar o debate, Castro foi à televisão para avisar que não havia tema proibido.

A partir daí, toda a população começou a pedir mudanças. Surgiram protestos contra salários baixos, problemas de transportes, falta de moradias e a necessidade de centros de lazer.

No total, Raúl Castro recebeu 1,2 milhão de críticas, a maioria pedindo reformas econômicas que poderiam ser feitas dentro de um socialismo reformulado.

Reformas

Assim, Raúl Castro chegou ao dia 24 de fevereiro de 2008, quando foi eleito à Presidência pelo Parlamento, pronto para fazer as mudanças pedidas pelo povo: reforma agrária, melhorias salariais e a eliminação das proibições.

A reforma de maior alcance será a agrária. O plano é distribuir entre os cubanos 50% das terras cultiváveis e também haverá a mudança na estrutura da organização agrária do país.

Até hoje esta estrutura é baseada em propriedades estatais e 80% das terras cultiváveis de Cuba estão nas mãos destas propriedades.
Quando o processo de reforma chegar ao ponto máximo, 70% do total das terras estarão nas mãos de cooperativas e pequenos agricultores, alguns proprietários e outros usufruindo gratuitamente.

Além da entrega de terras, agências de notícias de outros países também relatam que foram abertas linhas de crédito para o início, ampliação ou continuidade da semeadura de lavouras.

E, com o fim da igualdade salarial - princípio pelo qual, por mais que se trabalhasse, o empregado não poderia ganhar mais - deve começar a recuperação do poder aquisitivo dos salários.

Redefinição

A justiça social que se pretendia com a política de teto salarial acabou diminuindo os incentivos ao trabalhador e, segundo Raúl Castro, beneficiou os "preguiçosos".

"Socialismo é igualdade de direitos e de oportunidades, não de renda", disse Castro.

Com este reconhecimento das diferenças, Castro desencadeou também outra medida: a eliminação de proibições como posse de celulares e eletrodomésticos, e de estadias em hotéis. Com isso, milhares de celulares, motos e aparelhos de DVD foram vendidos e 10 mil quartos de hotel foram reservados.

Isto significa mais renda para o Estado, que pode utilizar no setor de habitação e transportes.

E o transporte é o setor em que o governo conseguiu sua grande vitória. Centenas de novos ônibus foram comprados apenas para Havana, aumentando o número de passageiros diários de 450 mil para 846 mil.

Burocracia

Para todas estas reformas, Raúl Castro deve tentar neutralizar seus piores inimigos no momento: burocracia e ortodoxia.

O próximo grande passo - planejado para 2009 - deve ser o Congresso do PCC que, em sua qualidade constitucional de "órgão governante da sociedade", deverá avaliar e, portanto, institucionalizar, as reformas.

Além disso, Raúl Castro também enfrenta outros problemas como a apatia crescente da população e a imigração de jovens profissionais. E Cuba também está sendo prejudicada pelo aumento mundial no preço dos alimentos.

Sejam quais forem as soluções, deverão ser aplicadas com rapidez, para que a expectativa do povo não se transforme em desânimo.

"Se há algo que aprendemos bem é que o tempo passa depressa. Desperdiçá-lo com inércia ou indecisão é uma negligência imperdoável", disse Castro.

Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080731_raulcastrodoisanosfn.shtml


A esquerda socialista e democrática precisa apoiar essas reformas, fazendo pressão para que essas reformas sejam ampliadas e promovam uma renovação completa do socialismo cubano, uma renovação que promova o estabelecimento de um Estado democrático e socialista de direito, com pluripartidarismo, sindicatos livres, direito de greve, imprensa livre, eleições livres, maior liberdade religiosa, etc. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, afinal, como disse a revolucionária Rosa Luxemburgo:

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês [...]". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Leia os textos abaixo e reflita

A revolução cubana e as esquerdas brasileiras

Daniel Aarão Reis Filho

Quando se tornou vitoriosa, há exatamente quarenta anos, a revolução cubana, assim como todas as autênticas revoluções, surpreendeu a América Latina e o mundo. No entanto, apesar do estupor inicial, quase ninguém ousava questionar seus princípios e programa.


Tratava-se de derrubar uma das ditaduras mais abomináveis do Caribe, conhecida pela truculência e corrupção, a de Fulgencio Batista. Neste sentido, os revolucionários apresentavam-se como, e de fato eram, em sua enorme maioria, jovens lideranças democráticas. Por outro lado, havia também a proposta de afirmar a autonomia de uma nação, recuperando a dignidade perdida numa história que convertera Cuba num paraíso de jogatinas e tráficos, um bordel do Grande Irmão do Norte.


Quem ousaria, publicamente, declarar-se contra tão nobres e elevados propósitos?


Assim, desde fins de 1958, os próprios representantes diplomáticos dos Estados Unidos começaram a sinalizar para o ditador que seu tempo chegara ao fim. Nesta altura os barbudos, como eram então chamados os guerrilheiros, de barbas grandes e desleixadas, gozavam de extraordinária popularidade no país e de grande simpatia na opinião pública internacional. Não gratuitamente eram apoiados por forças liberal-democráticas na América Latina e, principalmente, nos Estados Unidos.


Foi portanto num clima de congraçamento e de confraternização quase universais que se deu a entrada em Havana do Exército Rebelde. Um tempo de festa e de euforia, de unanimidade, representado pela Cuba Libre, onde se misturavam simbolicamente o rum cubano e a coca-cola norte-americana.


As esquerdas brasileiras, formalmente, saudaram, como todo o mundo, o triunfo da revolução. Entretanto, segundo seus vários matizes, alimentaram desconfianças, dúvidas e esperanças.


O Partido Comunista Brasileiro (PCB) desconfiava, e tinha suas razões. Com efeito, se a vitória da revolução cubana e do seu programa nacional-democrático, de um certo ângulo, podia ser analisada como a concretização da chamada primeira etapa da revolução latino-americana, preconizada há décadas pelo movimento comunista internacional para o continente, por outro lado, os comunistas cubanos não haviam jogado um papel de destaque no processo e só tardiamente tinham despertado para a força e, sobretudo, para o apelo popular dos guerrilheiros. Além disso, não havia naqueles barbudos nada que os assemelhase a lideranças burguesas, cuja presença era prevista e desejada na tão decantada primeira etapa da revolução.


Entre as esquerdas comunistas que se opunham ao PCB, e que se queriam revolucionárias, em contraposição à moderação reformista do partido de Prestes, havia dúvidas quanto à consistência daqueles revolucionários, considerados pequeno-burgueses, ou seja, por natureza instáveis, incoerentes, em suma, vacilantes. Eram homens de grandes ousadias, mas seriam capazes de assumir as tarefas revolucionárias com a consequência devida?


Por estas mesmas razões, foi entre os nacionalistas radicais e os católicos com propósitos de justiça social que a revolução cubana suscitou mais esperanças. Exatamente porque não fora dirigida pelos comunistas, quem sabe, aquele processo não poderia desembocar numa terceira via, renovadora, combinando radicalidade de métodos e objetivos sociais e democráticos, longe das tradições encarnadas pelas revoluções socialistas vitoriosas?


Entre incertezas e esperanças, a revolução cubana acelerou os ritmos. Parecia que os líderes revolucionários estavam levando a sério a realização de seu programa.

O Estado norte-americano e as grandes empresas não entendiam o que estava se passando. Afinal, até onde iriam aqueles cucarachas? Começou um jogo pesado de pressões e de intimidações. O cerco, o bloqueio, o apoio explícito às organizações contra-revolucionárias, a preparação e o desencadeamento, em 1961, de uma invasão -- frustrada -- para derrubar o poder revolucionário.


Os revolucionários respondiam no taco a taco: reforma agrária radical, nacionalização dos setores econômicos estratégicos, mobilização e armamento da população. E, assim, num trânsito mal definido, pouco explícito, uma revolução nacional-democrática transformou-se numa revolução socialista. A crise dos foguetes, em outubro de 1962, quando o mundo se viu à beira do desastre de uma guerra nuclear, consolidou o processo e as opções: Cuba tornou-se um país socialista, firmemente ancorado no bloco soviético.


O furacão cubano, como assinalou J. P. Sartre, recorrendo à metáfora da catástrofe natural, dava conta de um profundo processo de transformação social. Uma revolução plebiscitada por um povo em armas, mobilizado em comícios, ouvindo e aprovando com os fuzis no alto as caudalosas arengas e os decretos revolucionários de Fidel Castro, não raro assinados em praça pública.


As esquerdas brasileiras viveram então uma conjuntura de crise política e de intensas lutas sociais. De agosto de 1961 (renúncia de Jânio Quadros) a abril de 1964 (instauração da ditadura), foram quase três anos de agitação permanente em torno da necessidade (ou não) de promover no país um conjunto de reformas sociais, econômicas e políticas, as chamadas reformas de base. Um movimento, até então, inédito na história republicana brasileira, envolvendo operários, camponeses e escalões inferiores das forças armadas. Um medo pânico tomou as elites sociais e políticas e as classes médias, que passaram a se preparar para enfrentamentos decisivos.


Neste quadro a radicalização da revolução cubana entusiasmava as esquerdas, autorizando e legitimando todos os sonhos. Os comunistas de diversas filiações atenuaram suas críticas. Os do PCB passaram a apostar que a aliança com a União Soviética haveria de enquadrar os delírios dos barbudos. Os dissidentes e alternativos esqueciam antigos dogmas para se aterem aos avanços concretos da revolução. Entre os nacionalistas alimentava-se a expectativa de que Leonel Brizola poderia se tornar um Fidel Castro brasileiro. Também em nosso país uma revolução nacional radical poderia abrir horizontes imprevistos. O ecletismo da revolução cubana, seu descompromisso com tradições revolucionárias consagradas, sua surpreendente consequência prática, ensejavam a possibilidade de múltiplos apoios, cada um lia o que queria naquele processo rico e multifacetado.


Foram tempos heróicos, em que tudo parecia permitido, desde que realizado com audácia. Iniciou-se um fluxo ininterrupto de revolucionários brasileiros à Ilha vermelha do Caribe do qual até hoje muito pouco se sabe: militantes das Ligas Camponesas, da Ação Popular, do Movimento Nacionalista Revolucionário, todos queriam conhecer o primeiro território livre de América, como então, orgulhosamente, se auto-intitulava a Cuba revolucionária.


A grande questão era saber como Cuba sobreviveria ao cerco empreendido pelos Estados Unidos. Uma saída era disseminar a revolução pela América Latina, o que, ao mesmo tempo, aliviaria a pressão norte-americana sobre o Vietnã. No contexto da formação de organizações revolucionárias internacionais -- a Tri-Continental e a Organização Latino-Americana de Solidariedade -- a OLAS --, preparou-se um projeto de guerrilha continental, com uma sede inicial -- a Bolívia -- e um comandante -- o próprio Che, cada vez mais descrente da aliança soviética e da sobrevivência isolada da revolução cubana.


Nesta altura, em nosso país, um movimento civil-militar instaurara a ditadura militar. Em contraposição, Cuba jogou, por um certo tempo, a carta do nacionalismo revolucionário, apoiando Brizola enquanto este comprometeu-se com o enfrentamento armado (guerrilha de Caparaó). Quando fracassou esta alternativa, passou a auxiliar os movimentos comunistas dissidentes adeptos da luta armada e da teoria do foco guerrilheiro em particular.


A morte do Che na Bolívia, em outubro de 1967, não arrefeceu esta política. Centenas de revolucionários brasileiros (da Ação de Libertação Nacional/ALN, da Vanguarda Popular Revolucionária/VPR e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro/MR-8, entre outros) passaram então a realizar treinamentos de guerrilha urbana e rural em Cuba. Trabalho acadêmico recente (Denise Rollemberg) começou a desvendar este ainda obscuro processo, equivalente, nas palavras de um então revolucionário brasileiro, a um vestibular para o cemitério. Os cubanos não se limitavam a apoiar material e moralmente as tentativas guerrilheiras. Como os russos e chineses, antes deles, tratavam de conseguir influência e controlar direções políticas e organizações revolucionárias brasileiras.

Foi um tempo de tensões -- como Cuba revolucionária iria sobreviver sem revolução no continente latino-americano? O governo de Unidade Popular no Chile pareceu abrir, enquanto durou, uma brecha. Sua derrota, em setembro de 1973, a fechou. Para quebrar o isolamento, Cuba passou a namorar governos nacional-estatistas, quase sempre ditaduras militares (Alvarado no Peru, Torrijos no Panamá, Torres na Bolívia). Aquilo era uma decantação. Ainda seria possível associar Cuba com a utopia revolucionária?

Apesar de realizações incontestáveis, entre as quais se destacaria a generalização de sistemas de saúde e educação públicos, de qualidade excepcional, a revolução cubana esbarrava em limites que pareciam intransponíveis. O isolamento em terras americanas, asfixiante. A aliança com os soviéticos, impondo moldes e padrões ditatoriais, dificultando e mesmo impedindo a eclosão da originalidade e do imprevisto que tinham sido as grandes características de seus tempos heróicos. E a falta de tradições de auto-organização na sociedade, inviabilizando o controle social do poder, permitindo o desenvolvimento de aspectos às vezes caricaturais, como a permanência indefinida de Fidel Castro no centro do poder, como se fosse um monarca.

Enquanto isto, as esquerdas brasileiras, liquidada a alternativa armada, na primeira metade dos anos 70, seguiam evolução oposta: redescobriam os valores democráticos e as virtudes da auto-organização da sociedade, e aderiam, em larga medida, à crítica do socialismo realmente existente. Além disso, desde fins da década, a ditadura militar, em boa ordem, metamorfoseava-se em regime democrático e pluralista.

Como conciliar os antigos credos com as novas convicções?

Nas circunstâncias dos anos 80, frente à grande ofensiva do mal chamado neoliberalismo, e, sobretudo, frente à desagregação fulminante do socialismo soviético e de suas adjacências na Europa Central, a revolução cubana pareceu adernar. Progressivamente, e no desespero, engavetou antigos dogmas igualitaristas e nacionalistas e se abriu para o turismo e para o capital internacional, mantendo, porém, a centralização política e o partido único. Para as esquerdas brasileiras, envolvidas em lutas institucionais democráticas, tornou-se cada vez mais dificíl lidar com a revolução cubana.

Exercitou-se o turismo ideológico, de solidariedade, suscitando entre críticos impiedosos a maldosa asserção de que Cuba transformara-se na Disneylândia das esquerdas. Pequenos grupos ativos ainda tentam manter a chama, organizando eventos e atos públicos de apoio, mas uma grande parte observa com constrangimento as últimas evoluções da política do Estado cubano e as viagens de seu Líder Máximo.

Na luta desigual entre Golias (EUA) e David (Cuba), é quase insuportável não olhar o pequeno com simpatia. Pode ser uma atitude generosa, mas já não tem nada a ver com o internacionalismo revolucionário de antanho.

E assim, nas relações entre as esquerdas brasileiras e a revolução cubana, tão marcadas em outros tempos pelo heroísmo e pela idéia da revolução, sobrou uma certa melancolia. E uma atmosfera de naufrágio.


Autor:Daniel Aarão Reis Filho é professor de História Contemporânea da UFF.

Fonte: Jornal da Tarde, 9 jan. 1999.



As prisões de Cuba
Pietro Ingrao - Abril 2003

As notícias que chegam de Cuba são alarmantes e não permitem o silêncio. Em 3 de abril, ocorreram em diversos lugares da ilha processos contra 78 "dissidentes" ou — para usar palavras mais diretas — opositores do regime castrista. Somando as várias condenações infligidas a estes opositores, chega-se a centenas e centenas de anos de cárcere. São cifras espantosas. E, no caso destes processos, falar de rito sumário é um eufemismo um pouco ridículo.

Também não podemos nos enganar: é impossível que, nestes verdadeiros processos-relâmpago, tenham sido garantidos direitos de defesa elementares e tenha havido aquela prudência elementar, necessária, que, no entanto, é o tempero obrigatório quando se decide sobre a liberdade ou o encarceramento dos indivíduos e dos grupos.

Eram os acusados opositores do regime castrista e até — usemos a palavra forte — conspiravam contra o regime? E o que mais podiam fazer, visto que em Cuba faltam direitos essenciais de palavra, de organização, de luta política pública e reconhecida? E isso ainda hoje, quarenta anos depois da insurreição armada e da emergência revolucionária. E, além disso, onde está escrito que, até mesmo aos conspiradores algemados — quando não estão em condições de causar danos —, não devam ser concedidos elementares direitos e instrumentos de defesa? A justiça — esta palavra tão nobre e solene — carece, como do pão, do contraditório público e prolongado. Sem isso, o recinto do tribunal se torna uma farsa, um engano feroz.

Ainda no início de abril — numa conexão alucinante —, realizou-se em Cuba um outro processo, que levou à condenação à morte de três jovens que haviam seqüestrado uma balsa para alcançar o litoral dos Estados Unidos. Quem escreve aprendeu, em sua vida, a odiar a condenação à morte — este assombroso poder de matar aquele que já está algemado e confinado nas paredes de um cárcere. Mas aquela condenação à morte que se consuma e se realiza quase como um raio, e não permite apelação, e recusa até um momento de hesitação na hora de matar o indefeso — é verdadeiramente algo repugnante. E é enganosa: tem-se a ilusão de cancelar, com a mão do carrasco, os problemas políticos e humanos que não se sabe resolver.

Dir-se-á: tudo isso é necessário a Fidel para se proteger dos complôs americanos. Eu receio, ao contrário, que isso ajude Bush a dizer: vejam como é indispensável a superpotência americana...

Este é o quadro amargo. Eu não esqueço aquilo que, da insurreição cubana, veio como esperança e símbolo para um terceiro mundo sufocado pelo imperialismo e até para a difícil luta da esquerda anticapitalista no Ocidente avançado. Embora, pessoalmente, tenha tido dúvidas, muitas, realmente muitas — desde o início —, naquela segunda metade do século XX, quando pusemos o retrato do "Che" sobre um móvel da casa e cantamos nas manifestações a canção inesquecível. E acredito perceber, compreender o quanto ainda hoje Cuba represente uma esperança: antes de mais nada, para o continente centro-americano em busca de resgate, e também para outros lugares. Tanto mais agora, quando a superpotência americana proclamou — diante do mundo — o advento da era da "guerra preventiva".

Mas, se a questão agora é esta — como se vê na prática —, menos ainda podemos ter a ilusão de superar tal desafio com processos sumários e fuzilamentos fulminantes. Sinto repulsa por aqueles novíssimos cárceres de Guantânamo, nos quais não mais existe sequer a proteção, o recolhimento em si mesmo que a escuridão da cela propicia. Mas como posso combater as alucinações de Guantânamo se recorro à pena capital contra fugitivos recapturados e já com os pulsos algemados?

A batalha contra Bush e contra a doutrina da "guerra preventiva" pede outros caminhos: novos e diferentes. E se nutre de pacifismo, não de cárceres e algemas até absurdas, e de carrascos manchados de sangue.

Um intelectual, grande amigo de Cuba — o Nobel Saramago —, declarou a sua discordância. É uma escolha que reclama a coragem da verdade, e só Deus sabe se é preciso coragem diante dos desafios abertos no mundo.

Autor: Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, escreveu este texto para Il Manifesto , 15 abr. 2003. Um dos seus livros está disponível em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980) — e é momento fundamental da reflexão sobre democracia política e socialismo.

O SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

O mundo mudou, não vivemos mais no século XIX. Quando foi escrito o Manifesto Comunista, havia uma "ditadura da burguesia", uma vez que o voto era censitário, ou seja, só votava quem tinha propriedade. A classe trabalhadora vivia em estado de semi-escravidão, e a questão social era considerada caso de policia. Mas desde a segunda metade do século XIX, graças as lutas heróicas dos movimentos operários e populares, vem ocorrendo uma "socialização da política", com o estabelecimento do voto secreto e universal, legalização dos partidos operários e dos sindicatos, reconhecimento do direito de greve, adoção de uma série de direitos trabalhistas(jornada diária de 8 horas, férias remuneradas de 30 dias, salário mínimo), etc. Com isso a classe trabalhadora conquistou a cidadania, o que ocasionou a democratização do capitalismo, que deixou de ser uma "ditadura da burguesia", motivo pelo qual a esquerda precisa abandonar a defesa da ditadura do proletariado, assumindo em seu lugar a defesa da democracia como valor universal.

Foram os eurocomunistas, principalmente o dirigente eurocomunista italiano Enrico Benlinguer, os primeiros a defender a tese da democracia como valor universal.

"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, é um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país. Foi o principal responsável pela divulgação da obra de Gramsci e de Luckacs aqui no Brasil, e foi um dos fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade. Foi também um dos primeiros intelectuais marxistas em nosso país, a defender a necessidade urgente de conciliar socialismo e democracia. Escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".

"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.

Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.

Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.

Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.

Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."

(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)


Infelizmente muita gente na esquerda é dogmatica, motivo pelo qual não conseguem compreender que o Manifesto Comunista e toda obra de Marx e Engels foram escritas para analisar a realidade do capitalismo existente no século XIX, que não era democrático como é o capitalismo de nossos dias, e por isso continuam a defender a ditadura do proletariado. Mas isso é um erro grave que precisa ser corrigido.

Em entrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 51, o cientista político Carlos Nelson Coutinho respondeu a seguinte pergunta: Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?

Carlos Nelson Coutinho: "Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de ' Luta de Classes na França' de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus 'Cadernos do Cárcere', quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de "sociedade civil" as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso."

(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)


A esquerda precisa assumir a defesa da democracia como valor universal, assim como precisa assumir uma consciência ecológica, promovendo a conciliação do socialismo com a ecologia política, como vem fazendo os chamados "ecossocialistas".

O que é o ecossocialismo?

O ecossocialismo é uma corrente de opinião que atua no interior do movimento ambientalista, tanto no terreno nacional como internacional. Ele é parte do movimento sócio-ambiental, mas se define claramente como anti-capitalista, ao unir a luta ecológica à causa socialista, a partir do marxismo. Assim, o ecossocialismo demarca tanto com os socialistas que não consideram a importância estratégica da luta ecológica, quanto com os ecologistas que não atuam na perspectiva do socialismo.

No Brasil, o ecossocialismo iniciou-se na luta dos trabalhadores da Amazônia, principalmente através de Chico Mendes e do movimento dos seringueiros, que souberam associar a defesa da floresta e a defesa dos direitos dos trabalhadores e dos povos que habitam a Amazônia, ao mesmo tempo em que defendiam uma nova sociedade.

Hoje, o ecossocialismo tem conseguido cada vez mais adesões nos movimentos sociais e na esquerda brasileira. Na Europa e no mundo, ele vem se desenvolvendo, nos últimos trinta anos, a partir da contribuição teórica de marxistas não dogmaticos, cuja critica ao "socialismo real" somada a tomada de consciência ecológica, tem constituido a base para um pensamento socialista, radicalmente democrático e ecológico.

Socialismo e liberdade

A esquerda parece não ver nenhuma relação entre as concepções teórico-políticas de Lenin e toda evolução posterior das experiências pós-revolucionárias. Não fosse o maldito Stalin, certamente estaríamos no paraíso socialista.

Ora, ninguém pode subestimar o papel nefasto que Stalin cumpriu na história, mas atribuir a ele esta importância é, no mínimo, um simplismo que exige uma grande dose de boa vontade para convencer a nós mesmos. Stalin jamais poderia ter sido o que foi se a maioria dos socialistas na Rússia e no mundo não o tivessem apoiado entusiasticamente. E todos eram comunistas teoricamente referenciados no marxismo-leninismo (ou não?).

Mesmo aqueles que se opuseram ao stalinismo, como foi o caso de Leon Trotsky, na verdade defendiam o mesmo modelo totalitario e burocratico de socialismo. A oposição baseava-se no fato de Trotsky defender a exportação da revolução para a Europa Ocidental, enquanto Stalin defendia que o socialismo deveria ser construido primeiramente na Rússia. Fora isso, era apenas um duelo de egos. Tanto é verdade que as mesmas políticas adotadas por Stalin à partir de 1928, quando estabeleceu a completa estatização da economia, com a coletivização forçada no campo e a rápida industrialização nas cidades, acompanhada pela militarização do trabalho e estatização dos sindicatos, eram as mesmas políticas que Trotsky também defendia.

"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos, a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP, propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo, recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado, subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."

(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a Revolução")


A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse.

O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado 'socialismo real', foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

A crítica de Rosa Luxemburgo ao leninismo

Frei Betto enfatiza a importância de se levar em conta a subjetividade das pessoas para constituir uma sociedade socialista onde elas se sintam satisfeitas. Vejo como fundamentais as elaborações neste sentido, pois uma grande parte da esquerda continua raciocinando em cima de esquemas mecanicistas e objetivistas, como se a especificidade humana não existisse. Frei Betto conclui que houve "desvios do burocratismo e do stalinismo" em relação às concepções de democracia em Marx e Lenin.

É verdade que o stalinismo teve desvios em relação às concepções leninistas. Mas o que deve ser discutido é se as concepções de democracia em Lenin eram corretas, se não permitiram o desenvolvimento desses desvios.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin.

O stalinismo portanto não foi resultado de nenhuma "contra-revolução burocratica", e sim resultado dos graves erros existentes no modelo marxista-leninista, conhecido como bolchevique, ou seja, no modelo socialista desenvolvido por Vladimir Lenin.

A revolucionária marxista Rosa Luxemburgo sempre criticou Lenin e o bolchevismo. No clássico "Questões de organização da social-democracia russa", Rosa criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin.

"Num artigo famoso de 1904, intitulado 'Questões de organização da social-democracia russa', Rosa Luxemburgo critica a concepção leninista do partido como uma vanguarda centralizada e disciplinada de revolucionários profissionais, separada da grande massa dos trabalhadores, que teria por função dirigi-los. Contra Lenin, para quem a consciência de classe é levada de fora aos trabalhadores por essa vanguarda de revolucionários profissionais (já que para ele os próprios trabalhadores não têm condições por si sós de irem além de seus interesses imediatos, corporativos), Rosa defende a idéia de que a consciência nasce na própria luta, na ação. Para ela não pode haver separação entre o elemento espontâneo e o consciente, a organização e as tarefas a realizar se formam no decorrer da própria luta de classes, não previamente. Ou seja, não são as organizações que desencadeiam o processo revolucionário, mas é a situação revolucionária, a qual depende da conjugação de uma complexa série de fatores econômicos, políticos e sociais, gerais e locais, materiais e psíquicos, que leva à formação do elemento consciente."

(Isabel Loureiro; em "Vida e obra de Rosa Luxemburgo")


O autoritarismo bolchevique se explicitou logo nos acontecimentos relacionados à Assembléia Constituinte. Nas eleições de seus deputados, os bolcheviques só conseguiram 25%, dos 36 milhões de votos. Uma vez que eram absoluta minoria, dissolveram a Assembléia que só se reuniu em uma única sessão, em janeiro de 1918.

Com a eclosão da Guerra Civil em 1918, todos os partidos foram proibidos(com excessão do Partido Bolchevique, rebatizado como Partido Comunista da Rússia). E pior, o Exército Vermelho(bolchevique, ou seja, comunista), combateu não apenas o contra-revolucionário Exército Branco, constituido por oficiais e soldados czaristas, e que tinha o apoio das potências imperialistas(EUA, Grã Bretenha, França, Japão, etc). Combateu também os revolucionários do Exército Makhnovista(anarquistas), formado por camponeses, que haviam desapropriado a burguesia no sul da Ucrânia e promovido a reforma agrária na região. Os revolucionários anarquistas do Exército Makhnovista contribuiram decididamente para a derrota dos contra-revolucionários brancos liderados pelo general Denikin. E mesmo assim foram massacrados pelos vermelhos.

O Exército Vermelho também reprimiu brutalmente levantes camponeses e a revolta do soviet de Kronstadt, ocorrida em março de 1921.

O regime de partido unico, e pior, o totalitarismo, nasceram justamente nesse momento e não após a ascenção de Stalin ao poder. Inclusive Lenin argumenta em "A revolução proletária e o renegado Kautsky", escrito em 1918, que "A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não está preso por nenhuma lei."

Oras, um poder que não está preso por nenhuma lei é um poder totalitario, e pode portanto promover genocidios, como acabou promovendo na era stalinista.

Mesmo apoiando a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, de sacristia, sobre esse processo revolucionário. Pelo contrário, manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo e alertou para os riscos que esse autoritarismo existente na prática dos bolcheviques representava para o futuro da revolução, e dessa forma acabou prevendo o surgimento do stalinismo.

No clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo criticou os desvios autoritários promovidos pelos bolcheviques após a vitória da revolução, ocorrida em outubro de 1917, alertando para as consequências desses desvios.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês [...]".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

Rosa Luxemburgo deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos que seja obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.

"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe..."

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


É evidente portanto que o stalinismo é resultado dos graves erros existentes no próprio bolchevismo. O erro mais grave foi a defesa da ditadura do partido do proletariado(o Partido Comunista) no lugar da ditadura do proletariado, defendida por Karl Marx e por Friedrich Engels.

Outro erro foi a manutenção da "prisão dos povos", que era o Império Czarista. O isolamento da URSS não se explica somente pelo fracasso da revolução na Europa Ocidental, mas principalmente devido a manutenção da "prisão dos povos" em uma união soviética forçada.

Outro erro foi a tentativa de construir o socialismo por decreto, estabelecendo a completa estatização da economia e o sistema de requisições forçadas de todo excedente agricola. O chamado "Comunismo de Guerra" acabou promovendo a ruptura da aliança operário-camponesa, contribuindo ainda mais para a burocratização do estado soviético e para a consolidação do regime autoritário.

"Até certo ponto, era inevitável que, uma vez refluída a primeira vaga revolucionária na Europa ocidental, a burguesia ganhasse um período de respiro. Mas, provavelmente, não era inevitável que um processo autodestrutivo começasse a atingir a Revolução Russa a partir de 1918. E a verdade é que já nesse ano os bolcheviques começam a falhar em dois pontos, que todos esperavam que a revolução fosse resolver: o desmantelamento da prisão dos povos, que era o império czarista, e a realização de uma aliança operário-camponesa, questão importantíssima numa época em que o campesinato ainda tinha grande peso em muitas regiões do mundo.

A prisão dos povos foi mantida contra as nações islâmicas do ex-império czarista e contra os povos do Cáucaso em geral. Isso destruiu os movimentos islâmicos favoráveis aos bolcheviques ; e, com isso, o Império Britânico ficou com suas mãos livres para prosseguir sua política colonial no Oriente Médio e na Índia. Parte do famoso isolamento da Revolução russa veio daí, e não apenas dos acontecimentos na Europa.

Por outro lado, a aliança operário-componesa foi arruinada pelo sistema de requisições forçadas, imposto aos camponeses russos. Estes estavam dispostos a pagar um tributo à revolução (em percentagem da colheita), porque não queriam perder suas terras, permitindo uma restauração czarista, mas não queriam entregar todo o excedente agrícola, arbitrado segundo critérios extorsivos pelos agentes do poder soviético vindos da cidade.

Não é possível examinar aqui em detalhes as circunstâncias que deram origem a tais políticas desastrosas. No entanto, para entender a evolução posterior da URSS — e do movimento socialista — não se pode deixar de levar em conta que, desde o comunismo de guerra (o período entre 1918 e 1921), foram assentadas as bases da tendência à evolução não-democrática do processo político na URSS. Os camponeses constituíam 80 por cento da população russa. Não há democracia possível em conflito com tão grande parte da população; assim como não era possível que a manutenção da prisão dos povos através de uma união soviética forçada, deixasse de levar à russificação do novo Estado."

(Vitor Letízia; em "A era do retrocesso: as esquerdas e as guerras no século XX")



A DITADURA DO PROLETARIADO SEGUNDO MARX E ENGELS

Quando Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, a classe trabalhadora vivia em estado de semi-escravidão. A jornada de trabalho era de até 16 horas diárias, não havia férias e os trabalhadores ganhavam apenas o necessário para sobreviver. O voto era censitário, ou seja, apenas quem tinha propriedade podia votar e ser eleito, portanto os trabalhadores estavam completamente excluidos do processo político. Havia então uma verdadeira "ditadura da burguesia".

"Marx partiu do reconhecimento da realidade da ditadura da burguesia sobre e contra o proletariado no início da industrialização européia. Ditadura brutal, opressora, escravizadora e alienadora, que Lenin chamou de ditadura da burguesia ou dos proprietários do capital. E partiu também da experiência inovadora e trágica da Comuna de Paris. O ato emancipador dos oprimidos, segundo Marx, não é possível sem que haja ruptura. Ruptura não necessariamente cruenta, mas certamente epistemológica, isto é, de paradigma e de práxis do poder (visão e sua prática, conceito e sua implementação). A experiência de Marx e Engels em relação à burguesia do seu tempo lhes deu a convicção de que esta ruptura não poderia ser senão violenta."

(Marcos Arruda; em "Nota sobre a polêmica em torno da democracia e da ditadura do proletariado")


Ao defenderem a ruptura revolucionária, Marx e Engels afirmaram que os trabalhadores após tomarem o poder, deveriam construir a ditadura do proletariado. Ao contrário do que ocorreu nas fracassadas experiências socialistas do século passado, essa ditadura não deveria ser um regime totalitario de partido único, mas sim um regime democrático para os trabalhadores.

A concepção leninista é que deu início a degeneração do marxismo, transformando a ditadura do proletariado em ditadura do partido comunista.

"Elemento essencial da compreensão do conceito de transformação do Estado, em Marx, são as fases deste processo. Primeira fase, tomada do poder do Estado pela classe proletária - hoje, pelo conjunto das classes que vivem do seu trabalho, saber e criatividade. Segunda fase, instalação de um aparelho de Estado a serviço da emancipação, desalienação e empoderamento das classes trabalhadoras; entenda-se, no contexto atual, a serviço da reconquista da soberania nacional e popular, por meio da edificação da democracia integral, direta, eficaz e efetiva, de uma relação solidária e irmã com outros povos e com o meio natural. Terceira, a superação do Estado e do seu aparelho por um modo de representação capaz de orquestrar a diversidade sem feri-la nem eliminá-la, e superando toda forma patriarcal e hierárquica de poder.

Os elementos básicos da 'ditadura do proletariado' são sua transitoriedade, a demolição jurídica do sistema de propriedade e o estabelecimento de uma ordem em que "os produtores governam a si próprios". Portanto, uma revolução política que tem seu fundamento numa revolução econômica e jurídica. (...)

A verdadeira chave da visão de Marx, e também de Engels, é o estabelecimento de "uma constituição democrática" e uma realidade socioeconômica coerente com ela (1); isto implica, passageiramente, a hegemonia, inclusive político-militar, da classe social das trabalhadoras/es sobre a antiga classe dominante. Implica igualmente um processo, que eu entendo como gradual, de autoempoderamento do mundo do trabalho e de sua emancipação do trabalho, saber e criatividade humanos, através da posse compartilhada dos bens e recursos produtivos: a cooperação. Portanto, democracia econômica como fundamento da democracia política. Democracia do mundo do trabalho como a face positiva da 'ditadura revolucionária do proletariado', enquanto capitalistas houver que tentem reconquistar seus privilégios e seu status de opressores. Não é legítimo, portanto, entender o conceito de ditadura do proletariado fora do seu contexto histórico e da semântica que lhe atribui Marx."

(Marcos Arruda; em "Nota sobre a polêmica em torno da democracia e da ditadura do proletariado")


Portanto não basta ser anti-stalinista, é preciso ser opor ao modelo bolchevique. O leninismo deu inicio a degeneração do marxismo, e a esquerda precisa romper com o leninismo, resgatando o melhor do pensamento marxista e de outras tradições socialistas, na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia.

O historiador marxista Jacob Gorender, um dos maiores intelectuais da esquerda brasileira, condena o bolchevismo e reconhece nos graves erros deste modelo, a causa que originou a bestialidade stalinista.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43, onde fala sobre os temas abordados em "Marxismo sem utopia")


A esquerda precisa fazer uma auto-crítica urgente e romper com toda herança oriunda da tradição bolchevique, assumindo a defesa da democracia como valor universal e resgatando o melhor do pensamento marxista, no processo de refundação do ideal socialista.

É necessário construir um novo projeto socialista de conteúdo ético-humanista e cuja base teórico-filosófica atenda às enormes possibilidades criadoras do homem. Um socialismo radicalmente democrático, onde a satisfação das necessidades seja apenas o meio para atingir nosso objetivo principal: a liberdade.

"Das muitas leituras de Marx que tenho feito ao longo da vida, extraí a convicção de que para ele democracia se aprende fazendo. Não é um partido de tipo leninista ou stalinista que vai poder 'ensinar' democracia a ninguém. Nem é um Estado centralizador e opaco."

(Marcos Arruda; em "Nota sobre a polêmica em torno da democracia e da ditadura do proletariado")



(1)"... o primeiro passo na revolução operária é a ascensão do proletariado à categoria de classe dominante, a conquista da democracia" (Marx, 1848: 181). "Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista situa-se o período de transformação revolucionária de uma para a outra. A este período corresponde também uma fase de transição política, em que o Estado não será outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado." Marx se exprime com esta veemência marcado pela memória tragicamente inspiradora da Comuna de Paris. Eleita por sufrágio universal, a Comuna era o "governo dos produtores por eles próprios", a "forma política enfim encontrada que permitiria realizar a emancipação econômica do Trabalho", o "fermento para extirpar as bases econômicas sobre as quais se funda a existência das classes e, portanto, a dominação de classe." (Marx, 1875: 1429) "Seu projeto era substituir o sistema do capital pela produção cooperativa, regida por um plano comum", diz na nota seu comentarista, Maximilien Rubel (p. 1722). E Marx prossegue: "Desde já, o partido (operário alemão) não devia esquecer o essencial, isto é: todas estas belas coisinhas implicam o reconhecimento do que se chama a soberania popular, e não estão no seu lugar senão numa República Democrática." (Marx, 1875: 1430).

(Nota encontrada no texto "Nota sobre a polêmica em torno da democracia e da ditadura do proletariado")